O único poema de Adeodato Barreto, em concani
Bekaryanc
Ganthá dongrá patlean
Súryá uttún yetá,
Aplyá bangrá-kensán
Dogdogtá.
Sabar bangrá-zori
Tujim kirnam distái:
Ekuch durboryanchi
Guirestái.
Zaityá fudlyá tempá
Amché agé-ponngé
Taca “Suryá-Devá”
Munntalé:
Doryá-laguim vossún
Fantyá-pará vellar
Kori tokli moddun,
Nomoscar:
“Zoxim pilám daktim
Combiê-pakám-khalá
Zoxém avoi laguim
Daktém balloc nidta,
“Toxém amim”, ballocám,
tugê cuxic tencun
guetão adar amcám
Ani gunn.
Côro
Goenché tsakór, uttái!
Sorgar uzvadd zaló!
Súryá uttún ailó!
Báir sorái!
Tumchêo cuddolyô gheún
Bollán dornir honddyái
Tanchê torçadi korún
Handar maryái.
Amchyá bekaryanchá
razvotech’vell ailó:
Bekari, ubé ráum-yá
Sounsar amchó!
Aos desempregados
Por trás da cordilheira
Nasce o sol, e derrama
A sua barba soalheira
Em flama.
Fios e fios d’ouro
Formam a tua radiação:
Dos pobres, o tesouro
Da salvação.
Em tempos que já lá vão,
Os nossos antepassados
Ao “Deus-Sol” então
Vinculados:
Indo ao pé do mar,
Ao raiar o dia,
Diziam, ao dobrar
Em cortesia:
“Tal como o pintinho
Sob as asas da galinha,
Dorme o menininho
nos braços da mãezinha,
“Também nós,” filhotes,
A ti aconchegados
Fruímos dos teus dotes
E demais predicados.
Côro
Erga-se, ó braçal goês!
Já se fez luz no céu!
O sol rompeu o véu!
P’ra frente, sem revés!
Com as suas enxadas
Furem o solo com ardor;
Façam delas espadas,
Ombreiem-nas com vigor.
Dos nossos pés-rapados
Chegou a hora prima:
De pé, ó desempregados,
O mundo nos arrima!
(Tradução de Óscar de Noronha, Setembro de 2021)
O único poema de Adeodato Barreto, em concani
Numa casual leitura da história da literatura concani[1] fui surpreendido pelo poema ‘Bekaryanc’, de Adeodato Barreto (1905-1937),[2] porventura o único escrito em concani por essa figura ímpar da literatura luso-goesa e o qual consta d’O Livro da Vida.[3]
Porquê em concani – aos 30 anos de idade – e em Portugal?
Não consta que Adeodato Barreto tenha tido actividade literária nos primeiros 18 anos da sua vida que passou em Goa, então Índia Portuguesa. No entanto, com redobrada coragem e consciência, conjuntamente com alguns colegas goeses em Coimbra, não só criou o Partido Nacionalista Indiano e o Instituto Indiano anexo à Faculdade de Letras, mas também fundou o periódico Índia Nova[4] e as edições Swatwa. A sua actividade visava a propaganda do humanismo e civilização oriental, cujos elementos o grupo aprendera com intelectuais europeus, mormente Romain Rolland e Sylvain Lévi.
Adeodato Barreto exerceu, sucessivamente, as funções de professor e de escrivão de Direito em Aljustrel. Teve iniciativas no ramo de instrução (inclusive um curso de Esperanto); fundou e dirigiu o semanário Círculo, a que se associaram vários escritores do País; e foi assíduo colaborador dos jornais Seara Nova e Diabo. Reuniu a sua prosa jornalística em Civilização Hindu. Autodomínio, tolerância, humanismo, síntese (Lisboa: Ed. de Seara Nova, 1935); e, postumamente, foi publicado O Livro da Vida. Cânticos Indianos (Nova Goa: Tip. Sadananda, 1940)[5].
Sendo esse o ideário do grupo luso-goês, era natural que quisessem salientar a língua e cultura vernácula de Goa. É o que se deduz do seguinte apelo publicado no referido periódico: “Aos nossos leitores que tenham a rara felicidade de saber escrever em concani, pedimos especialmente o favor de colaborarem nesta página que será consagrada exclusivamente à defesa e utilização culta dessa língua.”[6]
Ora, esse plano não vingou, pois o periódico parecia ter mais promotores, aliás bem-intencionados, do que colaboradores proficientes na língua concani! É que os goeses, já desde o período pré-português, haviam sobremaneira usado o concani como veículo de comunicação oral, sendo o marata a língua cultural dos hindus de Goa, tal como o foi, mais tarde, o idioma luso, em relação à elite católica.[7] E se foi somente por gosto de escrever na sua língua materna que Adeodato Barreto se lançou em concani, fê-lo seis anos depois de fechar o Índia Nova, e não constando que tenha tido intenções de continuar a fazê-lo.
Como língua nativa da estreita faixa costeira do Concão, o concani tem diversos dialectos e a fortuna de ser expresso em caracteres romanos, devanagáricos, canareses, malaialeses e perso-árabes. Ora, ‘Bekaryanc’ aparece num dialecto misto de salcetano e bardezano e em caracteres romanos; não emprega a ortografia padronizada, pois, pelo menos no romano, ela não existia na altura; e, sem se perder em preciosismo vocabular, apresenta versificação mais ou menos regular.[8] O Poeta, na sua tentativa de remediar uma carência histórica e melhor realçar a identidade luso-goesa, demonstra um entranhado amor à terra e ao povo.
Não é portanto sem razão que dele diz Ruy Sant’Elmo, no prefácio a O Livro da Vida: “Longe da Índia, onde nasceu, em contacto com um meio europeu, jamais perdeu as características, sentimentais e mentais, que constituíam o seu ethos originário. Adeodato Barreto permaneceu sempre, no fundo, um oriental. A ausência do torrão, embora num país onde era estimado, onde triunfou, e onde constituíu família, tinha para ele o ressaibo amargo de um exílio forçado.”[9]
Será que foi só a partir desse “exílio forçado” que Adeodato Barreto se apercebeu da profunda subalternidade da língua concani e da classe operária na sua terra natal? Embora a sua família em Goa gozasse de privilégios de casta e classe, Adeodato Barreto, no poema ‘Bekaryanc’, ecoa o célebre grito marxiano dirigido ao proletariado. Tê-lo-ia escrito nessa língua para que o povo goês o pudesse ler e entender sem intermediários? Pelos vistos, dois anos antes de a morte o silenciar, Adeodato Barreto sonhou em dar voz aos oprimidos da Índia, como, aliás, de certa maneira o fizera também em relação aos habitantes da sua terra de adopção.
Evidentemente, ‘Bekaryanc’ não pretende ser uma “obra de arte”, mas um simples “desabafo de alma”,[10] como, aliás, diz Adeodato Barreto falando de toda a sua obra poética reunida n’O Livro da Vida. Volvendo, pois, os olhos saudosos a Goa, deu um último grito, em concani, antes do seu último suspiro, em Portugal.
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[1] Pereira, José. Literary Konkani: a Brief History. Panaji: Goa Konkani Akademi, 1992, p. 36; Sardesai, ManoharRai. A History of Konkani Literature. New Delhi: Sahitya Akademi, 2000, p. 139.
[2] De nome completo Júlio Francisco António Adeodato Barreto.
[3] Agradeço à Doutora Sandra de Ataíde Lobo o ter-me facultado este importante pormenor.
[4] Tinha como colaboradores principais José Paulo Teles e Telo de Mascarenhas, ambos estudantes de Direito.
[5] Veja-se também Civilização Hindu: seguido de O Livro da Vida (Cânticos Indianos). Lisboa: Hugin Editores, 2000.
[6] Índia Nova, n.º 1, p. 4
[7] Pelo menos no século XVI, o grande período das conversões religiosas, os portugueses reabilitaram a língua, estudando-a cientificamente, ou seja, confeccionando gramáticas e dicionários, obras que nenhuma outra língua indiana possuía na altura.
[8] O que nem sempre sucede com os seus poemas em português.
[9] Cf. O Livro da Vida. Nova Goa: Edições Swatva, 1940, [p. 8]
[10] In “Proémio”, [p. 13], escrito sob o pseudónimo Forçu Deodat, respectivamente, corruptelas de Francisco e do nome hindu Devdatt.
(In Revista da Casa de Goa, II Série – No. 12 Sep-Oct 2021, pp. 46-48)