É possível que a literatura oriental seja ‘o mais precioso repositório de adágios e provérbios, como o é de fábulas e de contos populares,’ afirma João de Figueiredo[i] no prefácio à Enfiada de Anexins Goeses, obra bilíngue (concani-português), de Roque Bernardo Barreto Miranda.
Filho do grande literato Jacinto Caetano Barreto Miranda, de Margão, além de trabalhar como chefe da impressão da Imprensa Nacional, em Nova Goa (Pangim), colaborou na imprensa local com prosa e verso. De entre a sua obra poética, encontram-se Coisas sabidas (1923), Disparates em verso (s. d.), e ainda um e outro trabalho inédito.[ii]
Na Enfiada, vêm à luz 200 ditos regionais, que nas palavras de Barreto Miranda são ‘flores do folclore de Goa’. Recolheu-os, em primeira mão, na conversação da gente, traduzindo a maioria deles em duas versões, literal e livre, ambas transcritas mais adiante. Não se trata, pois, de provérbios, máximas ou sentenças, o que seria de sabor clássico, mas, simplesmente, de adágios, ditados, ou rifões, de sabor popular.
Dir-se-ia que esse trabalho prima pelo seu valor sociológico e poético. Uns anos antes, monsenhor Sebastião Rodolfo Dalgado publicara, pioneiramente, em Coimbra, Florilégio de provérbios concanis (1922), contendo 2177 provérbios. Mas havia, sem dúvida, espaço para mais gente na seara.[iii] Barreto Miranda publicou anexins, dos mais correntes, no Heraldo, diário panginense, porém, numa altura em que poucos teriam dado conta do serviço que estava a prestar à terra.
Ainda por cima, traduziu os adágios, primorosamente, em verso, pondo-os assim em pé de igualdade com a sabedoria comum dos povos e a literatura universal.
Ora, quanto à ortografia e pronunciação dos vocábulos concanis, transcrevemos a seguir, como informação de utilidade, e não menos de curiosidade, as palavras de Barreto Miranda:
‘A escrita do concani – cuja ortografia em caracteres romanos, por não estar ainda bem definida – foi feita, para facilitar o leitor, possivelmente, conforme a fonologia popular em voga.
‘Relativamente à pronunciação: por não haver no alfabeto romano fonemas com que se possam exprimir precisamente certas palavras concanis, servimos da geminação de letras – letras cacuminais – as quais têm de ser fortemente articuladas com a ponta da língua, para dar o som aproximadamente natural da pronúncia concani. E para fácil enunciação, devem as palavras pronunciar-se em sílabas separadas. Para exemplo: melyá – kaddlyar – dounddolyá – vaurtolyak – devem ler-se assim: me-l-y-á – kadd-ly-ar – do-un-ddo-ly-á – va-ur-to-ly-ak.’[iv]
Não subscrevo de todo o sistema ortográfico seguido pelo estimado autor da Enfiada, limitando-me a observar que, quase um século após essa sua advertência, e apesar de, no enretanto, ter havido várias tentativas no sentido de uniformizar a ortografia e pronunciação da língua concani (sendo uma delas segundo o sistema Jonesiano, apresentada por monsenhor Dalgado), a situação continua no mesmo pé. Mas isso pouco retira o valor à Enfiada de Barreto Miranda.
Tradução literal | Tradução livre |
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Melyá bagór sorg melâ na. |
Não se chega a ver o céu sem morrer. Não se alcança qualquer bem ou ventura sem passar por trabalhos e amargura. |
Tondd aslyar vatt assá. |
Quem boca tiver, tem via que quer. Chega para onde quiser, no país desconhecido, quem sua língua souber. |
Boreak guelyar fattir yetá. |
Por ir alguém fazer o bem, mais das vezes o mal lhe advém. |
Tenkdênn momv kaddlyar, tonddant poddâ na. |
Nunca a boca saboreia quando se quer apanhar, com cambo, o mel da colmeia. É melhor por si fazer, p’ra, o que se deseja, obter. |
Dounddo’lyá fatrár pãyon dovorçó nay. |
Não deixar nunca o pé assente sobre uma pedra movediça, (por se deslocar facilmente). É sempre acto de imprudência meter-se em negócio incerto ou coisas de contingência. |
Dongrá-vôylim zaddâm Dev ximptá. |
As plantas dos oiteiros (desprezadas p’la humanidade) são por Deus regadas. Aos que não têm lar, nem pão, sempre a Providência toma sob a sua protecção. |
Dholé add, sounsar padd. |
Fora da vista (e cuidado) o mundo fica arruinado. Quando o dono está ausente, as coisas, que lhe pertencem, são roubadas livremente. |
Muclyém zot vetá taxem, fattlém zot vetá. |
A junta de bois de traseira segue conforme anda a primeira. Do que o de diante faz, segue o exemplo o de traz. |
Dek’lem moddém, ailém roddném. |
O ensejo de encarar o cadáver, fez chorar. As ocasiões provocam acções. |
Borém corchém ani fattir gueuchém. |
Fazer o bem e afinal receber p’lo dorso o mal. |
[i] Enfiada de Anexins Goeses, dos mais correntes, traduzidos em verso, de Roque Bernardo Barreto Miranda (Goa: Imprensa Nacional, 1931), p. VI.
[ii] Cf. “A Evolução do Jornalismo na Índia Portuguesa”, de António Maria da Cunha (in Índia Portuguesa, volume 2, Nova Goa: Imprensa Nacional, 1923); A Literatura Indo-Portuguesa, de Vimala Devi e Manuel de Seabra (Lisboa: Junta de Investigações do Ultramar, 1971); Dicionário de Literatura Goesa, volume 1, de Aleixo Manuel da Costa (Macau: Instituto Cultural de Macau e Fundação Oriente, s.d.); Dicionário de Goanidade, de Domingos José Soares Rebelo (Alcobaça, 2012). Embora o Dicionário de Literatura Goesa se refira a um inédito intitulado “Frutos sem sabor”, disse-me Jacinto Barreto Miranda, sobrinho do Poeta, que não consta nenhum manuscrito desse nome no espólio do tio.
[iii] Thomas Stephens (c.1549-1619), missionário jesuíta inglês residente em Goa, publicara alguns adágios goeses na sua Arte da Lingoa Canarim, os quais foram traduzidos livremente pelo orientalista J. H. da Cunha Rivara (1809-1879), na segunda edição dessa gramática por ele publicada, em 1857. Isso para não falar de conjuntos posteriores, traduzidos em português e em inglês, estes por V. P. Chavan (Konkani Proverbs, 1900); S. S. Talmaki (Konkani Proverbs and Idioms, 1932), António Pereira, jesuíta goês, (Konknni Oparichem Bhanddar, 1985), e, mais recentemente, por Edward de Lima (Konknni Oparincho Kox: A Book of Konkani Proverbs, 2017); ou ainda os publicados em outros lugares de expressão concani, tal como nos estados indianos de Karnataka e Kerala.
[iv] Enfiada, pp. X-XI.
(Publicado na Revista da Casa de Goa, Serie II, No. 17, Julho-Agosto 2022)
Sabedoria popular goesa.