Editorial

Temos nas mãos uma edição em que se fala do percurso das línguas concani e portuguesa em Goa; do teatro luso-tropical; da literatura de ficção e de viagens; da culinária; das artes e dos artistas; de fragmentos da nossa história e cultura; e, o que importa mais, lembra-nos do dever de sermos defensores de tudo o que compreende o conceito e espírito de Goa.

O número abre com um ensaio de título poético e conteúdo interessante: “Português em vários sons”, da autoria do nosso editor associado José Filipe Monteiro, que, mais além, faz uma recensão crítica a O Signo da Ira, romance neorrealista de Orlando Costa, um dos clássicos da literatura indo-portuguesa, da Goa dos anos sessenta do século transacto, autor ora duplamente lembrado nesta edição, com a crónica de Júlia Serra, sobre a peça teatral intitulada Sem Flores nem Coroas.

É sobejamente conhecido que em Goa o português e o concani mutuamente se enriqueceram. Menos conhecido, porém, é a história de duas irmãs indianas – o concani e o marata – que se entrechocaram. Foi um sábio goês residente em Lisboa que travou o conflito, e dele nos fala o editor associado Óscar de Noronha, no ensaio intitulado “Dalgado e a controvérsia concani-marata”.

Aproveitamos o ensejo para inaugurar uma nova secção, Documento, apresentando em tradução inglesa o primeiro dos nove artigos, sob o título de “O concani não é dialecto do marata”, há mais de um século publicados no Heraldo, de Pangim, por monsenhor Sebastião Rodolfo Dalgado que neles firmara as características linguísticas e gramaticais do concani, estabelecendo assim a sua identidade.

A doçura de uma língua sentimo-la na sua literatura popular, como bem ilustra o Cantinho do Concani, onde se tem revisitado adágios concanis traduzidos em português pelo finado poeta Barreto Miranda. Também a gastronomia tem o condão de amenizar o ambiente. Por isso, não admira que José Filipe Monteiro tenha rendido preito a Agnelo Silveira, pelas saudades do “homem que domiciliou a culinária goesa em Lisboa”.

De uma outra vertente do “Oriente mítico, lendário” escreve Ana de Miranda. No seu texto muito sugestivo, intitulado “Monsoon Funeral”, delineia uma nota sobre a história familiar; de como “aos poucos, devagar, com elegância, o habitante da casa despede-se e deixa-se dissolver na água de chuva”: tributo ao artista Rishaad de Miranda, filho do grande caricaturista Mário, que antes foi alvo de nossa homenagem (Revista da Casa de Goa, No. 12).

“O mundo é um palco e todos os homens e mulheres são somente actores”, é uma frase lapidar shakespeariana, que terá estado no fundo da mente de Joaquim Correia ao escrever “O Teatro em Goa: tradição e suas similitudes com Macau e Portugal”: um levantamento sobre o tradicional tiatr em concani de Goa, posto em paralelo com o teatro macaense em Patuá e o Teatro de Revista em Portugal.

E falando do Extremo-Oriente, António Aresta viaja “Da Índia para Macau”, seguindo o itinerário do aventureiro novecentista Pedro Gastão Mesnier, que foi também condutor das obras públicas e professor de física e química em Goa, e mais tarde, secretário particular do Governador de Macau, e aí ainda redactor e professor.

Uma vida fascinante essa; ou como diz Amanda D’Costa no seu poema, falando de um outro “homem com um sonho”: “Vale a pena”! Diga-se o mesmo da pintura de Clarice Vaz, nossa colaboradora residente; da aguarela de Girish Gujar, e da fotografia da autoria de Payal Kakkar. Claro que os três se referem a Goa, esse torrão que é Susegad (sossegado), como ficou patente numa exposição homónima, de pintura e programa cultural associado, da responsabilidade de João Coutinho, sócio da Casa de Goa. Curiosamente, também um semanário noticioso em formato vídeo, produzido em concani pela comunidade diaspórica goesa de Melbourne assim se intitula: Susegad Danpaar (Tarde Sossegada). São duas notícias que preenchem a respectiva secção da nossa Revista.

É claro que nunca fechamos a edição sem ponderarmos sobre a nossa cultura. Assim, os leitores terão o ensejo de ler a terceira parte do artigo da co-autoria de Philomena e Gilbert Lawrence, sobre o tema: “Será a cultura GEM (goesa, indiana oriental e mangaloriana) vítima de equívoco?” Muito importante para o esclarecimento das novas gerações, e para que elas se desistam dos clichés mal informados sobre o modo de ser indo-português.

Mas como era na realidade a vida em Goa? Na sua série sobre “Fragmentos da História de Goa”, Mário Viegas traça o perfil do Centro Regional de Chinchinim, que no século transacto fora uma agremiação activa sita nessa ilustre aldeia de Salcete.

Quem poderá ressuscitar os antigos guardiães do nosso modus vivendi? Aliás, o mais importante é achar novos, pois sem eles Goa nada será, e “por si acabará”, na frase algo apocalíptica atribuída a S. Francisco Xavier. E, há três quartos do século, que visavam os “Defensores da bandeira portuguesa em Bombaim”? São mistérios que nos desvenda John Menezes, no seu artigo bem documentado e com preciosos traços autobiográficos.

Temos a boa sorte de fazer parte desta Revista, que se esforça a ser também guardiã da cultura indo-portuguesa. Oxalá sempre seja bem compreendida pelos que detêm o poder e pelo povo em geral.

(Revista da Casa de Goa, Serie II, No. 24, Setembro-Outubro de 2023)

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