Errar é humano, perdoar é canino, dizia o Mário numa pequena publicação comemorativa dum Canil, algures na Índia, por ele ilustrada.

O amor e afeição que o Mário tinha para com os animais só se podia igualar com os sentimentos da Mãe dele. Lembro-me que em Borim depois de se atravessar a ponte metálica sobre o Zuari, a carreira, rumo a Pangim, parava por algum tempo para receber mais passageiros numa viatura já superlotada. Nessa paragem, além de vendedores de fruta, lanhas, bebidas gasosas e fios de zaiôs (uma variedade de jasmim) que vinham junto à viatura, também apareciam periquitos engaiolados. A minha Mãe comprava esses pássaros, soltava-os e devolvia as gaiolas ao radiante vendedor que podia apanhá-los e vendê-los novamente! Outrossim, no enclave de Cabinda, os nossos gatos siameses eram mimosiados com atum fresco do oceano Atlântico, que se arranjava raramente e com bastante dificuldade, enquanto o genro tinha que se contentar com nosso limitado estoque de sardinha enlatada! Isso porque em Angola faltava toda espécie de géneros alimentícios e de combustíveis, após a Revolução de 1974 em Portugal.

Em Loutulim, tínhamos um mini aviário, mormente para ovos. A maioria das galinhas eram batizadas pelo Mário. Uma delas, que aparecia sempre ao pequeno almoço, era a Madame Frufru. Quando uma dessas aves, ou um galo a mais, era transformado em caril de Goa ou dampaca de Damão, o Mário não tocava no prato. A desolação era também intensa quando  algum dos nossos muitos caninos rendiam a alma ao Criador. Lembro-me vivamente quando o nosso altivo Rapaz Rodrigues Raposo e o ilustre Farrusco Santana Dentuça nos deixaram após bastantes anos de fiel e alegre companhia, incluindo nos passeios do Mário na aldeia. Recordo-me que naqueles dias tristes o Mário não fez nenhuma refeição, fechando-se no quarto, que mais tarde viria a ser o seu estúdio de trabalho.

Esse mesmo amor o Mário dedicou à sua arte nata, que se desabrochou graças a embirração da nossa Avó paterna com os rabiscos dele nas paredes da casa. A Mãe, para acalmar os ânimos da sogra, deu um diário ao Mário, sugerindo que ele desenhasse todos os dias algum acontecimento interessante. Essa simples ideia materna foi o início, aos 7 anos, da carreira artística deste jovem envergonhado, de poucas palavras mas com piada, e com um dom de observação quase sobrenatural. Um dia o Mário disse-me: “O meu trabalho é uma constante oração”.

Os diários que a Mãe passou a oferecer-lhe no Natal de cada ano, mais tarde em papel de desenho, especialmente encadernado em Pangim, levando o ano e o nome na lomba, passavam de mão em mão dos primos, dos amigos e mesmo do Governador e Patriarca. Lembro-me do Patriarca D. José da Costa Nunes, que, segundo consta, deleitava-se com as caricaturas dos clérigos.

Baizu, Biggle, aos 7 anos

Quando jovem, o Mário tinha uma cabeleira bem espessa e um dos meus passatempos era fazer pequenas tranças do seu cabelo, enquanto ele registava acontecimentos no seu Diário. Nunca se aborreceu nem parou de desenhar. Nota-se que eu tinha apenas 5 ou 6 anos e ele estava já nos estudos universitários. Possuía o dom de trabalhar e conversar simultaneamente. Um dos outros passatempos, mas esse proporcionado por ele, era o piano, que aprendeu com a Mãe, e que eu ouvia com grande admiração. Imaginava-se pianista concertista fazendo vénias aos calorosos aplausos dos espectadores! Nunca pensou que iria fazer uma carreira como caricaturista, graças aos Diários que lhe abriram as portas.

O Mário não foi apenas caricaturista. Tem uma imensidão de obras sem caricaturas. Quase no fim da vida produtiva, concordou que os pequenos traços com os quais criava imagens monumentais teriam sido uma autoterapia inconsciente. Nunca posso cessar de admirar o volume do seu trabalho. Se pensarmos nas 365 entradas no diário, ao longo de pelo menos 18 anos, temos 6,570 desenhos compostos de caricaturas, retratos, pinturas de paisagens e figuras a cores. Ele também redigia com bastante humor. Pena que o tempo não lhe permitiu desfrutar mais desse seu outro dom.

Desabafou um dia que queria ter tempo para fazer o que mais gostava: experimentar cores pintando a natureza em aguarela. Constantes prazos a serem cumpridos para o ganha-pão não o tinham ainda permitido esse luxo. A rigidez nas mãos impediram mais obras. Contudo, fez várias tentativas a lápis e aguarela, sendo cinzento claro a cor dominante, assemelhando nuvens, com pequenas manchas em  rosa leve. Observação minuciosa desses borrões cinzentos, junto das manchas rosas, via-se o que parecia mini escaleres. Talvez recordação de Damão, sua terra natal. Não sei qual foi a sorte desses últimos trabalhos desse génio. Quiçá a mesma que dezenas deles tiveram quando o Tommy, o grande amigo canino, resolvia censurar aqueles que ele encontrava no chão do estúdio no apartamento em Bombaim, levantando a perna!

Mário com Bozo

O último companheiro canino em Loutulim foi o Happy, nome dado pelo seu neto. Este, aliás alegre canino, traumatisado com a imobilidade do Mário, tentava saltar para junto do seu corpo, gemendo. Olhando pela última vez aquelas bonitas e preciosas mãos, ora atadas como que em prece, fiz com que o fiel amigo dele me acompanhasse para um passeio junto à Natureza, tanto apreciada pelo Mário, cogitando que afinal tudo o que é bom dura tão pouco.

                                                                    Baizu, Biggle, irmã do Mário Miranda*

(Imagens: www.mariodemiranda.com)

 

 


* Maria de Fatima do R B M Figueiredo (1942-), natural de Bangalore. Meio século de trabalho: Portugal, Angola, Reino Unido, em diversas empresas particulares, consulado, embaixada e escritório de advogados. Actualmente em Goa com marido, no novo avatar como agricultores.