Vhokol – um conto de Olivinho Gomes traduzido por Óscar de Noronha – A Noiva
As férias judiciais atrasam os trâmites dos processos. Igualmente, o tabelião da comarca fica atarefado com montes de escrituras e doações, a distribuição das diligências e a sua devida passagem para o papel na forma legal deixa o pessoal muito atarefado.
Os tribunais haviam reaberto apenas na véspera. E numa cidade como Margão, onde o meu cartório era o único, estava eu ocupadíssimo, como sempre, quando se deu o incidente que ora vou contar.
Devia ser por volta do meio-dia e meio. Logo em frente ao meu cartório parava um carro do qual saía um cavalheiro jovem e janota. Veio pressuroso até a minha porta e pediu-me licença para falar. Notando esse quê de urgência, disse-lhe que entrasse.
Tendo ouvido tudo o que me contou, vi-me obrigado a interromper o trabalho e acompanhá-lo. Em poucos minutos, contou-me a história de uma senhora, que disse ser sua prima direita. Vivia enclausurada em casa e ora desejava lavrar a declaração da sua última vontade. Como não regulava bem, era necessário cumprir de imediato o seu desejo, de contrário enfurecia-se e era capaz de tudo. Queria ela que eu viesse urgentemente à sua casa.
Fui com Caetano, de carro. A casa situava-se num bairro interior da aldeia da Raia. Levou-nos meia hora a percorrer esse caminho, de voltas e reviravoltas, para chegar ao destino.
Como é que descrevo essa habitação? Não era uma simples casa; era um palacete. Sabe Deus de que século! E parece nunca ter sido tratada. Estava bem nos tempos passados uma construção embrenhada no meio de árvores de teca. Ora, via-se pedaços do reboco de cal caídos no chão, que deixavam expostas as pedras vermelhas. O resto da casa estava às escuras, parecendo prestes a ruir.
Subimos a escadaria meia quebrada e com limos. Caetano gritou por alguém. Apareceu então uma empregada, que trazia na mão uma vela acesa. Com as janelas todas fechadas, era escuro o interior do casarão. Eu, levando a pasta na mão, e com o mínimo de falas, fui pela casa adentro, junto com Caetano, à luz dessa vela.
Caetano arredou a cortina dum compartimento, que não era muito grande; deu-me para passar aí uma rápida vista de olhos. Quando me dei conta da situação, caiu-me o coração aos pés. Nessa casa, toda fechada, ficavam acesas o dia inteiro as velas dos candelabros da parede. Sobre uma mesa lá no canto estavam colocadas umas coisinhas. Aqui e acolá, estavam dispersos frascos de perfume, ganchos de cabelo, pentes, toalhas, lenços, espelhos… e numa cadeira encontrava-se sentada uma senhora, que fitava, murcha, e vestida de branco. Era o traje do seu noivado, que com o tempo se tornara amarelado, desbotado, manchado. Tinha aliás, o seu rosto, crestado pelas rugas, empoado. Calculo que ela não devia passar dos quarenta e tal anos. À sua volta, as aves haviam construído ninhos cobertos com as suas penas.
Apesar de ter entrado no quarto com Caetano, em bicos dos pés, os meus passos causaram-lhe sobressalto. Os seus olhos arredondados, sempre a fitar, mediram-me. Embora parecesse aliviada com a minha chegada, abriu ainda mais os olhos e, de súbito, soltou uma gargalhada danada, e gritou:
– Ha… ha… ha… lá vem o meu noivo. É esse mesmo, esse mesmo. É com ele que me vou casar. Vem ao pé de mim, meu senhor, meu amor. Estou à tua espera, ha… ha… ha…
Cobri-me de suor frio ao ouvir esse riso louco que me eriçou o pelo. Fiquei de alerta. A minha longa experiência de advogado e tabelião público não permitiria que me deixasse levar pela emoção. Ainda assim, senti-me um tanto atrapalhado e com a língua presa.
Procurei acalmar-me, e depois de me recompor, interpus as mãos dela nas minhas, e disse, carinhosamente:
– Não se preocupe, D. Rosa, sou o notário Armando Gomes da Costa. Diga-me, por favor, o que pretende; não se atrapalhe…
Mal ouviu essas palavras, mudou de semblante. Corou, e já não parecendo a mesma, segredou a sua vontade: a de passar as suas propriedades para o nome de Caetano, seu primo direito. Nada disse sobre o porquê e como. Autorizou-me a consultar Caetano. E disse terminantemente que queria que eu lavrasse aí e agora o seu testamento…
Ainda bem. Estava morto por sair da sua presença. E fi-lo juntamente com Caetano.
Sentámo-nos num quarto lá dentro. Na verdade, todos os compartimentos eram lúgubres, porém, este era melhor do que os outros, pois tinha pelo menos uma janela aberta. Logo que nos sentámos, a empregada serviu-nos o almoço e a seguir Caetano contou-me a história da sua prima Rosa.
Rosa Esmeralda das Dores da Silva, filha única, foi alvo do carinho e amor dos seus pais. Era bem-parecida, prendada, inteligente e afectuosa. Aos dezasseis anos de idade, passou no exame de acesso à universidade, seguindo depois para Bombaim para prosseguir os estudos superiores, pois, na altura, não havia colégios universitários em Goa. Era então uma moça que dava nas vistas; não havia rapaz que não se sentisse atraído por ela. Por outro lado, ela não caía por todo e qualquer, nem era de dar muita confiança.
Em Bombaim, matriculou-se no National College, de Bandrá, e fixou moradia na casa de algum conhecido. Em pouco tempo circulava o seu nome pela boca do povo. Era a primeira aluna da turma; como dançarina, não havia igual; e na beleza, era deslumbrante. Muito moço havia estalado os lábios. Como regra, escrevia para casa pelo menos quinzenalmente.
Sucedeu que, após uns sete ou oito meses, uma carta sua entristeceu os pais. Estes, porém, não tinham a coragem de contrariar a filha. Eis o que Rosa lhes escreveu: que viera a conhecer um simpático moço com quem andava enamorada. O rapaz era oriundo do norte da Índia, provavelmente, do Punjabe. As cartas dos seis meses que se seguiram só contavam maravilhas do rapaz: dos bailes a que assistiram, das praias balneares que frequentaram, dos filmes que viram; ao mesmo tempo que pedia novas remessas de dinheiro.
Passado algum tempo, chegava uma carta ainda mais triste. O rapaz, deixando o colégio e a cidade de Bombaim, regressara à sua terra natal, sem a Rosa saber a quantas andava. Numa palavra: ele a havia deixado. Correu ainda que Rosa pretendera suicidar, tendo alguém impedido de o fazer. Foi quando o pai foi buscar a filha de Bombai, e ela passou o ano inteiro em casa. Era manifesta a mudança que sofrera: já não tinha a antiga alegria de viver. Até parecia cansada da vida!
Apesar disso, daí a tempos, com renovado entusiasmo, regressou a Bombaim. Criou novas amizades. Aliás, era esse o seu intuito: travar novas relações, que, na verdade, teve com vários. Parecia-lhe de todo impossível deixar a vida da paródia, a que estava já habituada. Uma vez adquirido um hábito, sobretudo mau, ele torna-se um vício. Mas no meio de toda essa vida desregrada nunca teve sequer um cheirinho da felicidade, pela qual estava sequiosa depois do malogro do seu primeiro amor. Há rapazes que estimulam as emoções femininas, aproveitam-se delas, para no fim as deixar desapontadas. Ser vítima de semelhante infortúnio é o flagelo da moça. Por outro lado, quanto mais ela se defende de tais ciladas, mais cresce a estima e a consideração das pessoas. Mas, no verdor da juventude, poucos se apercebem disso, como também não conseguem discernir entre a paródia ingénua e a maliciosa.
Não deixei que continuasse o sermão.
– Tudo o que diz é pura verdade, senhor Caetano. Mas a mim interessam só os pontos essenciais, ou seja, os passos principais da vida dela. Conte-me só isso, pois quero avançar o testamento. Se não, ela lança-se contra mim…
– Peço desculpa, senhor doutor! Como dizia… é verdade…. – continuou Caetano, retomando o fio da história:
– À Rosa apetecia lançar o barco da vida no alto-mar, sem vela, nem remos, nem leme, ao mesmo tempo que, no meio das águas tumultuosas, procurava ancorar nalgum porto. Por fim, com vista num moço, escreveu a dizer: este é o meu noivo de certeza. Correu que era de Mapuçá; rapaz bem posto, de boas famílias.
O rapaz veio até a Raia para se apresentar aos pais de Rosa. Saiu aprovado. Foi marcado o casamento para daí a um ano, a 15 de janeiro de 1943.
Rosa regressou de Bombaim um mês antes do casamento, tendo completado o bacharelato em letras. Sentia-se tranquila, esperando passar alegremente o resto da vida na companhia do marido. Seria uma vida despreocupada, pois a riqueza da família lhes bastava para mais duas gerações. Importava-lhe apenas deixar o passado e pôr os olhos na construção do futuro. O noivo estava em Bombaim; e, em Goa, talhavam-se as roupas de casamento. Entretanto, o noivo anunciou por carta que chegaria no dia 13, o que deu lugar a dias de grande alegria para todos.
Quando viram que estava iminente o casamento da amimada filha única do batecar, também os manducares do prédio rural deram início a festejos. As suas vojem, dennem e denngui – consoadas – encheram a casa do proprietário. Como o pai da noiva já não pertencia aos vivos, os manducares mais velhos tomaram sobre si os arranjos do casamento, o que facilitou bastante a vida da bhattkan.
Quando o noivo veio à Raia, todo o prédio se encheu de contentamento. Encontrou-se com a noiva, com que acertou tudo: daí a dois dias iam-se casar, sendo a missa às dez da manhã, na igreja da Raia. Assente isso, declarou que seguia a Mapuçá.
Continuaram os preparativos pela noite fora. A manhã do casamento raiou no meio de alegre bulício. Minha prima direita, ora uma bela recatada, que vestira com grande ânimo o seu traje de noiva, estava já pronta. Que linda que ela parecia no seu vestido, bem-talhado e engomado, branco como a neve! Era o seu dia de maior júbilo. E chegou a hora da saída…
Ora, devia faltar um quarto para as dez. Aparecia o carteiro com um telegrama que tomámos como de felicitações. Era para a Rosa. Fui eu a abri-lo e logo ela o arrancou da minha mão. Mal o leu, de acabrunhada pôs-se a dar socos no peito e a chorar aos brados. Estava estonteada; revirou os olhos; começou a tremer; desmaiou, e antes que a segurássemos, caiu ao chão.
O telegrama dizia o seguinte: “Não posso vir ao casamento. Esqueça-me.” O remetente: Eduardo (nome do noivo). Trazia o endereço de Bombaim. E que remédio, se uma traição dessas estava reservada à minha prima direita!
Quando voltou ao siso, Rosa não pôde mostrar a sua linda cara. Estava fora de si. Desde então tem estado encerrada nesse quarto fechado, com a mente também fechada. Mesmo assim, não perdeu a esperança que tinha no seu noivo. Todo e sempre, vestida de mulher prometida em casamento, tem estado à sua espera. Até hoje. Toma banho em dias alternados e traja o mesmo vestido de noiva, e, toda empoada, fica aí sentada a essa mesa e a aguardar a chegada do noivo. De facto, está fora de si. Às vezes, num ímpeto, levanta-se e põe-se a andar; brama ou guincha, fala em voz alta, ou à toa. Só Deus sabe que pensamentos a atormentam! Desse noivo cruel, porém, nunca mais se soube o paradeiro. No meio dessa chocante marcha de eventos, morreu-lhe a mãe, ficando Rosa sozinha, a chorar as mágoas da vida. Dêmos graças a Deus que ela não tenha suicidado, embora a vida lhe tenha sido um lento suicídio.
Com essas palavras, terminava Caetano essa história dramática, que me golpeou o coração. O desgosto da Rosa tornou-se meu também. Ninguém sabe o que pode resultar das nossas acções e quão amargo pode ser o fruto: só de pensar nisso quase que me ia passar despercebida a diligência que ali me havia levado.
Não lhe consegui lançar novamente um olhar. Estava eu a verter lágrimas. Que rapariga modelar, educada num ambiente de alegria, e que ora se encontrava nesse infeliz emaranhado da vida! Haviam-se passado anos e ela envelhecera prematuramente. Não se podia prever a hora em que apagaria essa vela mortiça, deixando a casa às escuras. Por isso, almejava ela reavivar essa vela, o que tornava urgente esse testamento.
Lavrei rapidamente o testamento e com gentileza obtivemos a sua assinatura. E travando a catadupa de lágrimas, com um coração pesado e a mente reflectindo sobre as malhas da vida, saí do sítio o mais depressa possível. Ficou, porém, comigo a imagem triste dessa eterna noiva que nos tempos que já lá vão foi tão bela: ela destroça-me o coração e me persegue eternamente.
Notas Biográficas
Olivinho Gomes (1943-2009) foi concanista de renome, alto funcionário público, e, mais tarde, professor catedrático de concani, na Universidade de Goa. Autor de mais de 40 livros, poeta, contista e tradutor, verteu a Mensagem de Fernando Pessoa e Os Lusíadas de Luís de Camões para a língua concani, respectivamente, sob os títulos de Sondex e Lusiyatonn.
Traduzido do concani e publicado na Revista da Casa de Goa, Serie II, No. 20, Jan-Fev de 2023
Uma história dramática e que me deixa sensibilizado com a sorte da então linda moça mas sei que a lição a tirar desse drama é que não podemos brincar com os sentimentos dos outros. Hoje em dia coisas dessas devem ser uma banalidade em massa porque perdemos todo o sentido da realidade e isso tanto faz ser um homem ou uma mulher ! Vivemos outra realidade e num mundo diferente.