EDITORIAL

É inesgotável a temática goesa. Prova isso número após número da nossa Revista, e a presente edição, em que falamos da história, política e religião; das línguas e artes; da literatura e cultura; da culinária e do desporto; da sociedade e do ambiente, bem como de goeses ilustres. Tudo leva água ao nosso moinho.

     Goa está na mira do público, porém, alguns aspectos da sua vivência caíram no esquecimento, por sinal, o traje que figura na nossa capa: trata-se de um par curumbim a dançar (pintura da nossa colaboradora residente Clarice Vaz). Vítimas do processo de globalização, há anos que os tradicionais utentes deixaram a indumentária, e eis como ela agora enche o olho à classe de artistas.

Nesse sentido, em uma série de ensaios, Celina de Vieira Velho Almeida, também nossa colaboradora residente, abordou na nossa Revista várias expressões culturais do povo de Goa. Estas e algumas outras estão reunidas no livro Feasts and Fests of Goa: Flavour of a Unique Culture, recentemente publicado, e aqui analisado por Óscar de Noronha, sob o título “Cultura entre Capas”. E um outro trabalho, Becoming Goan, da autoria de Michelle Mendonça Bambawale, é alvo de uma crónica intitulada “De falea, feni e pugnar por Goa”, de Brian de Souza.

Esse aguardente típico de Goa conduz-nos naturalmente à nossa secção de “Vinhos e Iguarias”, onde temos como prato único o Caril de Goa, em feliz casamento com Soalheiro, sendo os “casamenteiros” o nosso editor associado José Filipe Monteiro e o eminente crítico de comida e vinhos, Fernando Melo. Não deixem de saborear esse artístico contributo, como também de visitar a secção de arte, onde apresentamos uma nova artista, Deborah Fernandes; além de Edgar João, que, longe da terra dos seus antepassados, sonha com os coqueiros; Girish Gujar, que pinta um sítio emblemático de Pangim; e Rima Dhume, uma janela de carepas com buganvílias em volta.

É assim que se vive em Goa!… tema em que se inspirou a crónica “Uma casa familiar em Goa”, de Valentino Viegas. Afirma o nosso editor associado que “com a criação, promoção e desenvolvimento de dinâmicas casas familiares, muitos dos problemas que a sociedade ocidental enfrenta, no seu quotidiano, podiam ser evitados e ultrapassados”. O mesmo autor aborda também “A percepção da Revolução dos Cravos em Goa”, efeméride que marcou não só Portugal, mas também a sua antiga pérola do Oriente.

De facto, Goa e os goeses deixaram a sua marca em todo o mundo. Na crónica de Mário Viegas ficamos a conhecer “António Mascarenhas – craque sem veleidades”. E, por sua vez, diz o casal Philomena e Gilbert Lawrence que, graças ao desenvolvimento do ecoturismo, “o sistema coração-pulmão de Goa está vivo e recomenda-se”. Desejemos o mesmo à sociedade goesa.

Entretanto, uma abordagem novecentista da sociedade goesa temo-la na novela Jacob e Dulce, que foi objecto de uma palestra de Luís Cabral de Oliveira, na Casa de Goa. Essa conferência, bem como o lançamento do livro intitulado A Língua Portuguesa que nos une, de Ivo Álvares Furtado, constam da nossa secção de Notícias.

Tal como a lusofonia une uma longa faixa tropical, da América à Ásia, a língua concani continua a ser o fio condutor da sociedade goesa pelo mundo. Mas, quando lhe foram negados foros de cidadania, recuperou-os monsenhor Sebastião Rodolfo Dalgado, através de uma série intitulada “O concani não é dialecto do marata”, que publicamos em tradução de Óscar de Noronha. Este também actualizou o concani da Enfiada de Anexins Goeses, de J. C. Barreto Miranda, seriada no Cantinho do Concani.

Além desse documento histórico, no quinto centenário de nascimento de Luís de Camões, trazemos à memória o ensaio “Camões, o Poeta do ‘Renascimento’ e a Ilha de Goa onde viveu”, de Renato de Sá, seguido do testemunho insuspeito do académico bengali Suniti Kumar Chatterji sobre Os Lusíadas. E encerra essa secção a história da imponente estátua do Bardo Português, que estadeava o largo da Velha Cidade de Goa.

Vem muito a propósito também a “Modesta epopeia portuguesa”, de Pedro Miranda Albuquerque, a deitar um novo olhar – crítico e original – sobre os grandes acontecimentos dos portugueses no Oriente. Note-se, porém, que sem eles não haveria o “milagre sociológico” de Goa, a que se refere Gilberto Freyre; não haveria a miscigenação literária de que fala Júlia Serra, no ensaio intitulado “Vimala Devi e a voz da saudade”: “os sentimentos, as desigualdades sociais, a diversidade linguística e religiosa e tantas outras temáticas que a autora captou e trouxe da sua Goa-Índia”.

Diga-se, de passagem, que n’A Literatura Indo-Portuguesa, Vimala Devi e Manuel de Seabra limitam-se a falar de autores goeses. Essa obra de grande fôlego não inclui Damão, que é detentor de um importante dialecto do “Portugal Sem Fim”, na expressão do jornalista Barata-Feyo: bom pretexto para publicar “Calor”, do poeta damanense Hermenegildo Lopes, que participou nos festejos do Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas, realizado este ano em Damão, por feliz iniciativa do Consulado-Geral de Portugal em Goa, como noticiamos na respectiva secção. E, de igual modo, temos também um reporte das actividades da Delegação da Fundação Oriente, outra instituição que tem vindo a prestar grande serviço à sociedade goesa.

Por último, mas não menos importante, queremos destacar dois grandes contributos nesta edição: o estudo de J. M. John Marshal sobre evidências históricas das ligações entre Velha Goa e a Arquibasílica de Laterão; e uma lúcida biografia do último Arcebispo-Patriarca de Goa, Dom José Vieira Alvernaz, da autoria de Adelino Rodrigues da Costa. Este bloco de dois artigos originais vem mesmo a calhar, pois, em menos de seis meses realiza-se a 18.a Exposição das Sagradas Relíquias de S. Francisco Xavier.

Curiosamente, o Santo basco que, à sua chegada a Goa, em 1542, exclamou “cosa para ver”, mais tarde teria dito que “Goa por si acabará”. Sem entrar no mérito de tão enigmática afirmação, seja apócrifa ou não, cumpre-nos antes orar por que Goa nunca acabe; ou melhor, por que perdure o seu dinamismo: uma Goa espalhada pelo mundo, uma Goa sem fim!

Revista da Casa de Goa, Serie II, No. 29, Julho-Agosto 2024, pp 1-3 https://rb.gy/mt3jzy

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