Uma conversa de Brian de Souza com Michelle Mendonça Bambawale, sobre como o escrever Becoming Goan (Ser Goês) a consumiu. Tradução de Oscar de Noronha, publicada, junto com o original, na Revista da Casa de Goa, No. 29, Julho-Agosto de 2024, pp. 32-36. https://online.fliphtml5.com/bcbho/kehk/?1720968246254#p=14

Encontramo-nos pouco depois das 16h, no Caravela, um café no bairro de São Tomé, em Pangim. É uma tarde abafada de sexta-feira. Depois de mandar vir chá e panqueca de laranja, começámos a falar sobre o livro Becoming Goan, de Michelle.

É o seu primeiro livro, muito íntimo, lançado nos princípios deste ano, após o qual Michelle empreendeu uma digressão promocional “auto-infligida”. O livro vai bem, disse, e está esgotada a primeira tiragem de 2.000 exemplares. Assinou os direitos para a venda do livro internacionalmente; e está muito entusiasmada, pois isso vai permitir a compra do livro não só aos goeses da diáspora, mas também aos outros que visitaram e desejam saber mais sobre o pequeno estado de Goa.

Começo por perguntar o que a levou a escrever esse livro. “Andava a blogar durante a Covid e escrevi Being Goan, que era sobre o que há de tão especial nos goeses, (e isso mais tarde entra como capítulo no presente livro), e Living in Siolim in 2020, sobre como as coisas haviam mudado: a comida, as pessoas, etc. E porque tanto ela como Goa estavam a mudar, Michelle sentiu-se inspirada: era “o único livro que queria escrever”.

Becoming Goan é uma narrativa diversificada. Tem memórias, histórias pessoais, tradições socioculturais, curiosidades e lendas, a terra e o feni (bebida fermentada, única de Goa), e mais. Quando peço a Michelle que fale da essência da obra, diz que surgiu como um livro sobre “os dias da minha vida”, como uma placa de Petri em que “queria capturar somente as minhas vivências”.

Foi-lhe dito que os acontecimentos da sua aldeia ancestral de Siolim tinham paralelos com Shimla ou Kerala; mas para ela, Goa é única, a sua “cultura é diferente”. Por ironia do destino, os seus avós haviam partido para Pune, na Índia Britânica, em busca de oportunidades, porém, décadas depois, Michelle voltava, passando a viver em Siolim, pois, entretanto, o mundo já era outro.

Goa sincrética

Contextualiza o livro, dizendo: “Sempre fui indiana e, com o livro, adicionei um ingrediente goês à minha identidade indiana”. E acrescenta com naturalidade: “Não conhecia a Goa sincrética”. Aqui aponta um tema que é sem dúvida o substrato do livro: a identidade. As questões de identidade estão a ser debatidas globalmente, e isso “me fez pensar sobre a minha cultura; e tendo passado uma vida inteira no ramo da educação, era um tema constantemente abordado, no que diz respeito à língua materna, à cultura e às questões à volta do colonialismo e do preconceito ocidental, etc.”

As apresentações do livro já a levaram a Mumbai, Pune e Bengaluru, onde amigos, familiares e ex-colegas apareceram com entusiasmo para a ouvir ler o livro e responder a perguntas. E em Dubai, foi entrevistada pelos apresentadores do podcast “Kiss me, I’m Goan”.

Será que Goa é vista como não-convencional em relação à grande tela indiana? Diz Michelle: “Muitos disseram-me que quando vêm a Goa, podem livrar-se do salwar kameez, pois a cultura é de aceitação”. Afinal, os goeses, tanto cristãos como hindus, são conservadores, mas os de fora vêem a identidade goesa como essencialmente “hippie”.

Falando de aspectos da identidade, Michelle admite que tem dificuldades com o concani, embora ache a versão hindu mais fácil por estar mais próxima do marata, que conhece. À parte da língua, os elementos da identidade goesa incluem a religião sincrética, a dependência do arroz, do coco e do peixe, algo que, quem aqui vem, não compreende. Ela fica triste por quem mora no estrangeiro ou vem de outros lugares da Índia, tentando aqui “recriar o seu Dubai ou Delhi”, não se integrar na cultura local.

Falea

De seguida, conversamos sobre certos aspectos do livro, a começar por falea, “amanhã” em concani, ou essencialmente algo que “pode esperar por amanhã”. Michelle atira a cabeça para trás e ri-se. Admite que é frustrante. “Tenho que ir a Mumbai e sentir a urgência no meu sistema”, observa.

Depois, há a buzina e a raiva na estrada. Michelle conta uma anedota sobre a sua visita ao extraidor de óleo de coco. Encontrou aí pessoas sentadas calmamente à espera de que chegasse o dono. Eram apenas aldeões que estavam habituados a esperar sem nunca reclamar. E lá fora, eram as buzinas e o trânsito. Acha que é bom ter paciência, e que não ter pressa é um modo de vida já aceite. Pessoas estranhas ao meio tão-pouco conseguem entender o que se passa.

Encontro com o feni

Falamos sobre o seu encontro com o feni. Michelle novamente atira a cabeça para trás e ri-se. Lembra-se dum dia cansativo quando a urraca com gelo a reanimou. Mas nem por isso gostava muito do feni, até que recentemente a bebida lhe foi recomendada para problemas do estômago. É, portanto, um gosto adquirido.  Duas amigas suas que leram o seu livro provaram ou a urraca ou o feni. “Se o feni é parte integrante de Goa, também o é a propriedade rústica”, acrescenta Michelle. Todo o goês tem um problema a resolver ou enfrentar, e isso “faz dele um goês”.

Um tio ilustre

Digo-lhe que me comove o que escreveu sobre o seu tio e padrinho, o comandante de esquadrilha Clarence D’Lima, que morreu em 1977, ao tentar aterrar o avião que tinha a bordo o ex-primeiro-ministro Morarji Desai, que sobreviveu. Relembra as memórias de seu tio, que, na altura, tinha apenas 39 anos. “Era arrojado, e há histórias de como aterrava o seu helicóptero ao pé da sua aldeia de Socorro e corria para casa. Era alvo do culto dos heróis, porém, quando criança, foi travesso: abria autoclismos, descia pelos degraus de casa com a sua bicicleta, fazendo todo o tipo de coisas arriscadas”

Comunidade ameaçada

Com a migração interna e externa de Goa, pergunto se os goeses são uma comunidade em perigo. Observa que, enquanto os goeses se multiplicam lá fora, em Goa passam a ser uma minoria. Tendo obtido passaporte português, muitos optaram por partir, frustrados com a venalidade e a falta de oportunidades.

Michelle elogia os que pugnam por Goa. Cita exemplos de aldeões de Carmonã, Pomburpa e Siolim, os quais lutam por preservar o seu modo de vida: “Os siolenses estão furiosos e exaustos de lutar pelos seus direitos. Essa questão tem que entrar no debate político; as coisas têm que mudar.”

Do balcão da sua casa em Siolim desfruta de boa vista, vê “pessoas não-goesas dispostas a assinar reclamações contra o corte de árvores e a destruição do meio-ambiente. São jovens e velhos, e isso é bom. Quem entrou com acção policial no caso do corte de árvores de Siolim é um jovem que trabalha na diáspora.”

Ao escrever o seu livro, Michelle sentiu influências de vários outros: Filomena e A Daughter’s Story, ambos de Maria Aurora Couto; Glad Seasons in Goa, de Frank Simões, o qual está esgotado; bem como o icónico romance goês, Sorrowing Lies my Land, de Lambert Mascarenhas, que foi reeditado em 2022. Além disso, dois romances sobre a diáspora goesa lhe falaram à alma: Gods and Ends, de Lindsay Pereira, passado entre os goeses de Mumbai, e Sunita De Souza Goes to Sydney, and Other Stories, de Roanna Gonsalves. Ambos a fizeram pensar em como as pessoas que saem de Goa não voltam aos seus lugares ancestrais, mesmo que tenham aí propriedades. E leu também Karmelin, de Damodar Mauzó.

Ao encerrarmos o bate-papo, remeto para o epílogo do livro, onde Michelle apela que haja um equilíbrio entre o desenvolvimento e a preservação do ambiente. No fim, cita G. S. Patel, juiz da Relação, que considera Goa como terra pela qual vale a pena lutar: “Citei-o, pois não podia escrever de outra maneira”.

Sejamos ou não ancestralmente goeses, o que importa é lutar pelo que há de precioso em Goa, frisa Michelle. Na sua opinião, todos os que pugnam por Goa são, na realidade, goeses. E assim terminamos com uma nota de esperança. Chega a hora de preservar Goa. Nesse particular, não pode haver “falea”.

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