De falea, feni e pugnar por Goa
Uma conversa de Brian de Souza com Michelle Mendonça Bambawale, sobre como o escrever Becoming Goan (Ser Goês) a consumiu. Tradução de Oscar de Noronha, publicada, junto com o original, na Revista da Casa de Goa, No. 29, Julho-Agosto de 2024, pp. 32-36. https://online.fliphtml5.com/bcbho/kehk/?1720968246254#p=14
Encontramo-nos pouco depois das 16h, no Caravela, um café no bairro de São Tomé, em Pangim. É uma tarde abafada de sexta-feira. Depois de mandar vir chá e panqueca de laranja, começámos a falar sobre o livro Becoming Goan, de Michelle.
É o seu primeiro livro, muito íntimo, lançado nos princípios deste ano, após o qual Michelle empreendeu uma digressão promocional “auto-infligida”. O livro vai bem, disse, e está esgotada a primeira tiragem de 2.000 exemplares. Assinou os direitos para a venda do livro internacionalmente; e está muito entusiasmada, pois isso vai permitir a compra do livro não só aos goeses da diáspora, mas também aos outros que visitaram e desejam saber mais sobre o pequeno estado de Goa.
Começo por perguntar o que a levou a escrever esse livro. “Andava a blogar durante a Covid e escrevi Being Goan, que era sobre o que há de tão especial nos goeses, (e isso mais tarde entra como capítulo no presente livro), e Living in Siolim in 2020, sobre como as coisas haviam mudado: a comida, as pessoas, etc. E porque tanto ela como Goa estavam a mudar, Michelle sentiu-se inspirada: era “o único livro que queria escrever”.
Becoming Goan é uma narrativa diversificada. Tem memórias, histórias pessoais, tradições socioculturais, curiosidades e lendas, a terra e o feni (bebida fermentada, única de Goa), e mais. Quando peço a Michelle que fale da essência da obra, diz que surgiu como um livro sobre “os dias da minha vida”, como uma placa de Petri em que “queria capturar somente as minhas vivências”.
Foi-lhe dito que os acontecimentos da sua aldeia ancestral de Siolim tinham paralelos com Shimla ou Kerala; mas para ela, Goa é única, a sua “cultura é diferente”. Por ironia do destino, os seus avós haviam partido para Pune, na Índia Britânica, em busca de oportunidades, porém, décadas depois, Michelle voltava, passando a viver em Siolim, pois, entretanto, o mundo já era outro.
Goa sincrética
Contextualiza o livro, dizendo: “Sempre fui indiana e, com o livro, adicionei um ingrediente goês à minha identidade indiana”. E acrescenta com naturalidade: “Não conhecia a Goa sincrética”. Aqui aponta um tema que é sem dúvida o substrato do livro: a identidade. As questões de identidade estão a ser debatidas globalmente, e isso “me fez pensar sobre a minha cultura; e tendo passado uma vida inteira no ramo da educação, era um tema constantemente abordado, no que diz respeito à língua materna, à cultura e às questões à volta do colonialismo e do preconceito ocidental, etc.”
As apresentações do livro já a levaram a Mumbai, Pune e Bengaluru, onde amigos, familiares e ex-colegas apareceram com entusiasmo para a ouvir ler o livro e responder a perguntas. E em Dubai, foi entrevistada pelos apresentadores do podcast “Kiss me, I’m Goan”.
Será que Goa é vista como não-convencional em relação à grande tela indiana? Diz Michelle: “Muitos disseram-me que quando vêm a Goa, podem livrar-se do salwar kameez, pois a cultura é de aceitação”. Afinal, os goeses, tanto cristãos como hindus, são conservadores, mas os de fora vêem a identidade goesa como essencialmente “hippie”.
Falando de aspectos da identidade, Michelle admite que tem dificuldades com o concani, embora ache a versão hindu mais fácil por estar mais próxima do marata, que conhece. À parte da língua, os elementos da identidade goesa incluem a religião sincrética, a dependência do arroz, do coco e do peixe, algo que, quem aqui vem, não compreende. Ela fica triste por quem mora no estrangeiro ou vem de outros lugares da Índia, tentando aqui “recriar o seu Dubai ou Delhi”, não se integrar na cultura local.
Falea
De seguida, conversamos sobre certos aspectos do livro, a começar por falea, “amanhã” em concani, ou essencialmente algo que “pode esperar por amanhã”. Michelle atira a cabeça para trás e ri-se. Admite que é frustrante. “Tenho que ir a Mumbai e sentir a urgência no meu sistema”, observa.
Depois, há a buzina e a raiva na estrada. Michelle conta uma anedota sobre a sua visita ao extraidor de óleo de coco. Encontrou aí pessoas sentadas calmamente à espera de que chegasse o dono. Eram apenas aldeões que estavam habituados a esperar sem nunca reclamar. E lá fora, eram as buzinas e o trânsito. Acha que é bom ter paciência, e que não ter pressa é um modo de vida já aceite. Pessoas estranhas ao meio tão-pouco conseguem entender o que se passa.
Encontro com o feni
Falamos sobre o seu encontro com o feni. Michelle novamente atira a cabeça para trás e ri-se. Lembra-se dum dia cansativo quando a urraca com gelo a reanimou. Mas nem por isso gostava muito do feni, até que recentemente a bebida lhe foi recomendada para problemas do estômago. É, portanto, um gosto adquirido. Duas amigas suas que leram o seu livro provaram ou a urraca ou o feni. “Se o feni é parte integrante de Goa, também o é a propriedade rústica”, acrescenta Michelle. Todo o goês tem um problema a resolver ou enfrentar, e isso “faz dele um goês”.
Um tio ilustre
Digo-lhe que me comove o que escreveu sobre o seu tio e padrinho, o comandante de esquadrilha Clarence D’Lima, que morreu em 1977, ao tentar aterrar o avião que tinha a bordo o ex-primeiro-ministro Morarji Desai, que sobreviveu. Relembra as memórias de seu tio, que, na altura, tinha apenas 39 anos. “Era arrojado, e há histórias de como aterrava o seu helicóptero ao pé da sua aldeia de Socorro e corria para casa. Era alvo do culto dos heróis, porém, quando criança, foi travesso: abria autoclismos, descia pelos degraus de casa com a sua bicicleta, fazendo todo o tipo de coisas arriscadas”
Comunidade ameaçada
Com a migração interna e externa de Goa, pergunto se os goeses são uma comunidade em perigo. Observa que, enquanto os goeses se multiplicam lá fora, em Goa passam a ser uma minoria. Tendo obtido passaporte português, muitos optaram por partir, frustrados com a venalidade e a falta de oportunidades.
Michelle elogia os que pugnam por Goa. Cita exemplos de aldeões de Carmonã, Pomburpa e Siolim, os quais lutam por preservar o seu modo de vida: “Os siolenses estão furiosos e exaustos de lutar pelos seus direitos. Essa questão tem que entrar no debate político; as coisas têm que mudar.”
Do balcão da sua casa em Siolim desfruta de boa vista, vê “pessoas não-goesas dispostas a assinar reclamações contra o corte de árvores e a destruição do meio-ambiente. São jovens e velhos, e isso é bom. Quem entrou com acção policial no caso do corte de árvores de Siolim é um jovem que trabalha na diáspora.”
Ao escrever o seu livro, Michelle sentiu influências de vários outros: Filomena e A Daughter's Story, ambos de Maria Aurora Couto; Glad Seasons in Goa, de Frank Simões, o qual está esgotado; bem como o icónico romance goês, Sorrowing Lies my Land, de Lambert Mascarenhas, que foi reeditado em 2022. Além disso, dois romances sobre a diáspora goesa lhe falaram à alma: Gods and Ends, de Lindsay Pereira, passado entre os goeses de Mumbai, e Sunita De Souza Goes to Sydney, and Other Stories, de Roanna Gonsalves. Ambos a fizeram pensar em como as pessoas que saem de Goa não voltam aos seus lugares ancestrais, mesmo que tenham aí propriedades. E leu também Karmelin, de Damodar Mauzó.
Ao encerrarmos o bate-papo, remeto para o epílogo do livro, onde Michelle apela que haja um equilíbrio entre o desenvolvimento e a preservação do ambiente. No fim, cita G. S. Patel, juiz da Relação, que considera Goa como terra pela qual vale a pena lutar: “Citei-o, pois não podia escrever de outra maneira”.
Sejamos ou não ancestralmente goeses, o que importa é lutar pelo que há de precioso em Goa, frisa Michelle. Na sua opinião, todos os que pugnam por Goa são, na realidade, goeses. E assim terminamos com uma nota de esperança. Chega a hora de preservar Goa. Nesse particular, não pode haver “falea”.
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Shepherds that scatter the sheep
Not many indictments in the Holy Scriptures would equal this one in severity: ‘Woe to the shepherds who destroy and scatter the sheep of my pasture!’
Who are these shepherds? The Prophet Jeremiah often referred to both kings and priests as ‘shepherds.’ Their political and spiritual failure caused the Jews to disperse. It is clear from the First Reading (Jer 23: 1-6) that he foresaw the coming of a true Shepherd who would not scatter, not destroy, but lead the sheep to God.
In the Gospel (Mk 6: 30-34), Jesus reiterates that injunction. He wants shepherds to be models of love and service. Hence, they have to be formed according to His Sacred Heart and be trained to put God above all things. They would then be exemplars of knowledge and virtue, of which we have had glorious examples: priests toiling in parishes, indefatigable missionaries, learned doctors of the Church, and other selfless workers.
That is to say, thousands working in the Lord’s Vineyard have touched lives, provided spiritual healing, and acted as beacons of faith, inspiring others to join the priesthood and serve in like manner. Political shepherds, though, living in a godless world are a different breed, and less said about them the better, for usually do not share our perspective. In the ultimate analysis, they do not care for anybody but themselves; many hoodwink the people and lead them astray.
But alas, nowadays, it is sad to see that many spiritual shepherds too, (mis)guided by modern-day philosophies, ideologies and worldviews, follow their political counterparts. They slavishly imitate them instead of guiding and inspiring them. They show a lack of commitment to their vocation and disbelief in many tenets of the faith; they neglect their primary sacerdotal duties, as a result of which, they ‘scatter’ and ‘destroy’.
That is a typical situation of sheep without a shepherd, akin to a child without mother. At any rate, it is easier to cater to material needs than to the spiritual, for the latter can only be done with the purposes set by the Good Shepherd Jesus Christ and under His express protection.
In this regard, we must not discard the many prophetic messages about the crisis in the Church and the world at large. Our Lady of La Salette has said: “Rome will lose the faith and become the seat of the Antichrist.”
Mercifully, we also know of St John Bosco’s dream of an endless sea – representing the abovementioned crisis – in which two solid columns were soaring high into the sky: one bore a statue of Our Lady, Help of Christians, and the other, supported a Host of proportionate size, with the following inscription beneath: ‘Salus credentium’ (‘Salvation of believers’).
After all, we have it from the mouth of Our Lord that the gates of hell shall not prevail against His Bride, the Church. So, we are not to despair but to remain hopeful, faithful and prayerful.
Finally, St Paul in the Second Reading (Eph 2: 13-18) reminds that those ‘who were far off have been brought near in the blood of Christ’. He has extended salvation to the whole world: what the Jews had failed to do, Jesus did Himself, by reaching out to the Gentiles. Of course, in dealing with nonperforming shepherds, He will ‘set shepherds over them who will care’.
The mission of the Church is to seek out the lost sheep and bring all peoples into a single fold. It is also the bounden duty and privilege of lay people to be part of this noble mission as priest, prophet and king (CCC #783): to be labourers in the great harvest.
Goa without end
EDITORIAL
Goan themes are infinite. This is proven by issue after issue of our magazine, and the current edition, in which we talk about history, politics and religion; languages and the arts; literature and culture; cookery and sport; society and the environment, as well as illustrious Goans. It is all grist to our mill.
Goa is in the public eye, but some aspects of its living have been forgotten, such as the costume on our cover: a kunbi pair dancing (painting by our resident contributor Clarice Vaz). Victims of globalisation, the traditional wearers gave up the dress years ago, and here’s how it the apple of the artist’s eye.
In this vein, Celina de Vieira Velho Almeida, another of our resident contributors, covered various cultural expressions of the Goan people in a series of essays in our magazine. She has put together these and a few others in her recently published book, Feasts and Fests of Goa: Flavour of a Unique Culture, reviewed here by Óscar de Noronha, under the title “Culture between the Covers”. And another work, Becoming Goan, by Michelle Mendonça Bambawale, is the subject of a feature entitled "Of falea, feni and fighting for Goa", by Brian de Souza.
This typical Goan alcoholic drink naturally leads us to our “Wines and Delicacies” section, where we have Goa Curry as a unique dish happily married to Soalheiro, the “matchmakers” being our associate editor José Filipe Monteiro and the eminent food and wine critic Fernando Melo. Be sure to savour this artistic contribution, as well as visit the art section, which features a new artist, Deborah Fernandes; Edgar João, who, far from the land of his ancestors, dreams of coconut trees; Girish Gujar, who paints one of Panjim’s iconic locations; and Rima Dhume, an oyster-shell window with bougainvillea around it.
That’s how we live in Goa!... a theme that inspired Valentino Viegas’ feature article, “A family home in Goa”. Our associate editor says that “with the creation, promotion and development of dynamic family homes, many of the problems that Western society faces in its daily life could be avoided and overcome.” The said author also discusses “How Goa perceived the Carnation Revolution”, an event that marked not only Portugal, but also its former Pearl of the Orient.
In fact, Goa and the Goans have made their mark across the world. In Mário Viegas’ feature, we learn about “António Mascarenhas – an unpretentious star”. And, according to Philomena and Gilbert Lawrence, “Goa’s heart-lung system is alive and well”, thanks to the development of ecotourism. Let’s wish Goan society the same.
Meanwhile, a 19th century understanding of Goan society is found in the novel Jacob e Dulce, which was the subject of a lecture by Luís Cabral de Oliveira, at Casa de Goa. That lecture, as well as the launch of the book A Língua Portuguesa que nos une, by Ivo Álvares Furtado, feature in our News section.
Just as Lusophony unites a long tropical strip, from America to Asia, the Konkani language continues to be the conducting wire of Goan society throughout the world. And when denied citizenship status, Monsignor Sebastião Rodolfo Dalgado restored it through a series titled “Konkani is not a dialect of Marathi”, which we publish in translation by Óscar de Noronha. The latter has also updated the Konkani of J. C. Barreto Miranda’s Enfiada de Anexins Goeses serialised in the Konkani Corner.
In addition to this historical document, on the occasion of the fifth centenary of the birth of Luís de Camões, we publish the essay “Camões, the Poet of the ‘Renaissance’ and the Island of Goa where he lived”, by Renato de Sá, followed the Bengali academic Suniti Kumar Chatterji’s fair assessment of The Lusiads. And the section closes with the story of the imposing statue of the Portuguese Bard, which used to stand in the square of the city of Old Goa.
Pedro Miranda Albuquerque’s “Modesta Epopeia Portuguesa” also comes in very opportunely, taking a new look – critical and original – at the Portuguese epic story in the Orient. It should be noted, however, that without it there would not be Gilberto Freyre’s “sociological miracle” of Goa; there wouldn’t be the literary miscegenation that Júlia Serra talks about in her essay titled “Vimala Devi e a Voz da Saudade”: “the feelings, social inequalities, linguistic and religious diversity and so many other themes that the author captured and brought back from her Goa-India.”
Incidentally, in A Literatura Indo-Portuguesa, Vimala Devi and Manuel de Seabra only cover Goan authors. Their magnum opus does not include Daman, which in fact holds an important dialect of that “Portugal Without End”, as journalist Barata-Feyo put it: a good pretext to publish “Calor”, by Damanese poet Hermenegildo Lopes, who took part in the celebrations for the Day of Portugal, Camões and the Portuguese Communities, which this year took place in Daman, at the happy initiative of the Consulate-General of Portugal in Goa, as you can see from the respective section. And we have a report of the activities of the Goa Delegation of Fundação Oriente, another institution that has been rendering yeoman’s work to Goan society.
Last but not least, we wish to highlight two great contributions to this issue: J.M. John Marshal’s study on the historical evidence of the links between the old City of Goa and the Lateran Archbasilica; and a lucid biography of the last Archbishop-Patriarch of Goa, Dom José Vieira Alvernaz, by Adelino Rodrigues da Costa. This block of two original articles comes in very handy as the 18th Exhibition of the Sacred Relics of St Francis Xavier takes place in less than six months.
Curiously, the Basque missionary who, on his arrival in Goa, in 1542, exclaimed “cosa para ver”, later said “Goa will end by itself”. Without going into the merits of such an enigmatic statement, whether or not apocryphal, we should rather pray that Goa never ends, or rather, that its dynamism endures: a Goa spread across the world, a Goa without end!
Revista da Casa de Goa, No. 29, July-August 2024, pp 1-3 https://rb.gy/mt3jzy
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Goa sem fim
EDITORIAL
É inesgotável a temática goesa. Prova isso número após número da nossa Revista, e a presente edição, em que falamos da história, política e religião; das línguas e artes; da literatura e cultura; da culinária e do desporto; da sociedade e do ambiente, bem como de goeses ilustres. Tudo leva água ao nosso moinho.
Goa está na mira do público, porém, alguns aspectos da sua vivência caíram no esquecimento, por sinal, o traje que figura na nossa capa: trata-se de um par curumbim a dançar (pintura da nossa colaboradora residente Clarice Vaz). Vítimas do processo de globalização, há anos que os tradicionais utentes deixaram a indumentária, e eis como ela agora enche o olho à classe de artistas.
Nesse sentido, em uma série de ensaios, Celina de Vieira Velho Almeida, também nossa colaboradora residente, abordou na nossa Revista várias expressões culturais do povo de Goa. Estas e algumas outras estão reunidas no livro Feasts and Fests of Goa: Flavour of a Unique Culture, recentemente publicado, e aqui analisado por Óscar de Noronha, sob o título “Cultura entre Capas”. E um outro trabalho, Becoming Goan, da autoria de Michelle Mendonça Bambawale, é alvo de uma crónica intitulada “De falea, feni e pugnar por Goa”, de Brian de Souza.
Esse aguardente típico de Goa conduz-nos naturalmente à nossa secção de “Vinhos e Iguarias”, onde temos como prato único o Caril de Goa, em feliz casamento com Soalheiro, sendo os “casamenteiros” o nosso editor associado José Filipe Monteiro e o eminente crítico de comida e vinhos, Fernando Melo. Não deixem de saborear esse artístico contributo, como também de visitar a secção de arte, onde apresentamos uma nova artista, Deborah Fernandes; além de Edgar João, que, longe da terra dos seus antepassados, sonha com os coqueiros; Girish Gujar, que pinta um sítio emblemático de Pangim; e Rima Dhume, uma janela de carepas com buganvílias em volta.
É assim que se vive em Goa!… tema em que se inspirou a crónica “Uma casa familiar em Goa”, de Valentino Viegas. Afirma o nosso editor associado que “com a criação, promoção e desenvolvimento de dinâmicas casas familiares, muitos dos problemas que a sociedade ocidental enfrenta, no seu quotidiano, podiam ser evitados e ultrapassados”. O mesmo autor aborda também “A percepção da Revolução dos Cravos em Goa”, efeméride que marcou não só Portugal, mas também a sua antiga pérola do Oriente.
De facto, Goa e os goeses deixaram a sua marca em todo o mundo. Na crónica de Mário Viegas ficamos a conhecer “António Mascarenhas – craque sem veleidades”. E, por sua vez, diz o casal Philomena e Gilbert Lawrence que, graças ao desenvolvimento do ecoturismo, “o sistema coração-pulmão de Goa está vivo e recomenda-se”. Desejemos o mesmo à sociedade goesa.
Entretanto, uma abordagem novecentista da sociedade goesa temo-la na novela Jacob e Dulce, que foi objecto de uma palestra de Luís Cabral de Oliveira, na Casa de Goa. Essa conferência, bem como o lançamento do livro intitulado A Língua Portuguesa que nos une, de Ivo Álvares Furtado, constam da nossa secção de Notícias.
Tal como a lusofonia une uma longa faixa tropical, da América à Ásia, a língua concani continua a ser o fio condutor da sociedade goesa pelo mundo. Mas, quando lhe foram negados foros de cidadania, recuperou-os monsenhor Sebastião Rodolfo Dalgado, através de uma série intitulada “O concani não é dialecto do marata”, que publicamos em tradução de Óscar de Noronha. Este também actualizou o concani da Enfiada de Anexins Goeses, de J. C. Barreto Miranda, seriada no Cantinho do Concani.
Além desse documento histórico, no quinto centenário de nascimento de Luís de Camões, trazemos à memória o ensaio “Camões, o Poeta do ‘Renascimento’ e a Ilha de Goa onde viveu”, de Renato de Sá, seguido do testemunho insuspeito do académico bengali Suniti Kumar Chatterji sobre Os Lusíadas. E encerra essa secção a história da imponente estátua do Bardo Português, que estadeava o largo da Velha Cidade de Goa.
Vem muito a propósito também a “Modesta epopeia portuguesa”, de Pedro Miranda Albuquerque, a deitar um novo olhar – crítico e original – sobre os grandes acontecimentos dos portugueses no Oriente. Note-se, porém, que sem eles não haveria o “milagre sociológico” de Goa, a que se refere Gilberto Freyre; não haveria a miscigenação literária de que fala Júlia Serra, no ensaio intitulado “Vimala Devi e a voz da saudade”: “os sentimentos, as desigualdades sociais, a diversidade linguística e religiosa e tantas outras temáticas que a autora captou e trouxe da sua Goa-Índia”.
Diga-se, de passagem, que n’A Literatura Indo-Portuguesa, Vimala Devi e Manuel de Seabra limitam-se a falar de autores goeses. Essa obra de grande fôlego não inclui Damão, que é detentor de um importante dialecto do “Portugal Sem Fim”, na expressão do jornalista Barata-Feyo: bom pretexto para publicar “Calor”, do poeta damanense Hermenegildo Lopes, que participou nos festejos do Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas, realizado este ano em Damão, por feliz iniciativa do Consulado-Geral de Portugal em Goa, como noticiamos na respectiva secção. E, de igual modo, temos também um reporte das actividades da Delegação da Fundação Oriente, outra instituição que tem vindo a prestar grande serviço à sociedade goesa.
Por último, mas não menos importante, queremos destacar dois grandes contributos nesta edição: o estudo de J. M. John Marshal sobre evidências históricas das ligações entre Velha Goa e a Arquibasílica de Laterão; e uma lúcida biografia do último Arcebispo-Patriarca de Goa, Dom José Vieira Alvernaz, da autoria de Adelino Rodrigues da Costa. Este bloco de dois artigos originais vem mesmo a calhar, pois, em menos de seis meses realiza-se a 18.a Exposição das Sagradas Relíquias de S. Francisco Xavier.
Curiosamente, o Santo basco que, à sua chegada a Goa, em 1542, exclamou “cosa para ver”, mais tarde teria dito que “Goa por si acabará”. Sem entrar no mérito de tão enigmática afirmação, seja apócrifa ou não, cumpre-nos antes orar por que Goa nunca acabe; ou melhor, por que perdure o seu dinamismo: uma Goa espalhada pelo mundo, uma Goa sem fim!
Revista da Casa de Goa, Serie II, No. 29, Julho-Agosto 2024, pp 1-3 https://rb.gy/mt3jzy
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Gestão apostólica
Nas leituras de hoje, vemos os primórdios do ministério cristão. Este tinha por trás o peso de uma tradição plurissecular traçada originariamente para o povo eleito. Israel, porém, não correspondeu ao chamamento e, por isso, Deus enviou à terra o seu Filho único para cumprir a sua missão, pois “O mesmo sucede à palavra que sai da minha boca", diz o Senhor, "não voltará para mim vazia, sem ter realizado a minha vontade e sem cumprir a sua missão" (Is. 55: 11).
Na Primeira Leitura (Am 7: 12-15), vemos Amós, pastor de ovelhas e produtor de figos de sicómoro, de Teqoa, opor-se às instruções do sacerdote idólatra do templo, Amazias, para fazer vista grossa à arrogância e à injustiça do rei Jeroboão II. Em vez disso, Amós denuncia esses males. No santuário real de Betel, então, acusam-no de conspiração política contra o rei. Amazias, saindo em defesa dos interesses da Coroa, proíbe Amós de profetizar contra Israel e expulsa-o da terra. É assim que o poder instituído actua contra Amós, que fazia questão de proclamar a Palavra de Deus em toda a plenitude.
A disputa de Amós com Amazias é fundamental para compreender não só a missão de Amós, mas a de todos os profetas. Não se trata apenas de uma página do passado, mas de um eco da realidade dos nossos dias. Quantos leigos e responsáveis eclesiásticos têm a coragem de defender a Igreja e a comunidade? Quantos de nós estão prontos a enfrentar indivíduos e governos, filosofias mundanas e correntes políticas? Quantos defendem os valores do Evangelho e anunciam a Palavra de Deus com liberdade, franqueza e sem medo?
No Evangelho (Mc. 6: 7-13), Jesus retomou o ponto em que o sistema judaico tinha parado, rejeitando o plano de Deus. Farto de chefes cobardes, ingratos e falsos, Jesus prepara a liderança apostólica. Não exige fanfarra, mas simplicidade; não procura dinheiro, mas dedicação; não haveria padrinhos, mas apenas Deus Pai. Chamou os Doze e enviou-os dois a dois, segundo o costume judaico, para que pudessem não só ajudar-se um a outro, mas também ser testemunhas segundo a lei.
No entanto, Jesus não se prendeu às leis do mundo, mas moveu-Se pela graça. Deu aos apóstolos poder sobre os espíritos impuros, exortou-os a não se ligarem a qualquer forma de mundanismo. Tal como Amós, que tinha deixado claro que não era um profeta "profissional" ou remunerado, Jesus "ordenou-lhes que não levassem nada para o caminho, a não ser somente um cajado; nem pão, nem saco, nem moedas na cinta; mas que fossem calçados com sandálias. E acrescentou: ‘Não leveis duas túnicas’".
Jesus reforçou o espírito apostólico com directrizes ousadas. Quando os apóstolos chegassem a uma cidade, deviam procurar uma casa hospitaleira. Se um lugar não os recebesse ou se recusassem a ouvi-los, deviam sacudir o pó dos pés (um ritual que os próprios judeus praticavam quando regressavam de terras pagãs) "como testemunho contra eles". Para Jesus, os judeus que não recebessem a Boa Nova eram de facto pagãos! E era um ‘testemunho contra eles’, no sentido de que só eles seriam responsáveis pelo julgamento que lhes sobreviria, mais terrível do que o de Sodoma e Gomorra.
Em outro lugar dos Evangelhos, temos uma lição de diplomacia resumida para nós, a Igreja contemporânea: "Envio-vos como ovelhas para o meio de lobos; sede, pois, prudentes como as serpentes e simples como as pombas" (Mt. 10: 16). Isto ensina-nos que os cristãos não devem comportar-se como gado a caminho do matadouro; e a Igreja deve deixar de se flagelar por acusações feitas fora do seu contexto histórico. Por isso: “Seja este o vosso modo de falar: Sim, sim; não, não. Tudo o que for além disto procede do espírito do mal" (Mt. 5,37). Ao mesmo tempo, recorda-nos S. Paulo: "Fiz-me fraco para os fracos, para ganhar os fracos. Fiz-me tudo para todos, para salvar alguns a qualquer custo" (1 Cor. 9: 22).
Por isso, os cristãos devem ser sábios, diligentes e viver da graça divina. O Apóstolo dos Gentios, na Segunda Leitura (Ef. 1: 3-14) de hoje, diz-nos muito particularmente que Deus nos escolheu ainda antes da criação do mundo, para sermos seus filhos adoptivos por Jesus Cristo, como aprouver à sua vontade e para a glória de Deus. Este verso é considerado um hino jubiloso a Deus pelo seu plano maravilhoso concentrado em Cristo e os seus Apóstolos. Assim, a gestão apostólica torna-se parte integrante do plano salvífico de Deus. Todos nós fazemos parte disto; todos nós somos apóstolos!
Apostolic Management
In the Readings of today, we get to see the beginnings of the Christian ministry. This was backed by the weight of a centuries-old tradition originally designed for the Chosen People. But Israel failed to respond to the call, so God sent His Only Son to earth to fulfil His mission, for, ‘So shall my word be that goes out from my mouth,’ says the Lord, ‘it shall not return to me empty, but it shall accomplish that which I purpose, and succeed in the thing for which I sent it.’ (Isaiah 11: 55)
In the First Reading (Am 7: 12-15), we see Amos, a shepherd and sycamore fig farmer from Teqoa, stand up to the idolatrous temple priest Amaziah’s directives to turn a blind eye to king Jeroboam II’s arrogance and injustice. Instead, Amos denounces those evils. As a result, in the royal sanctuary of Betel, they accuse him of a political conspiracy against the king. Amaziah, coming out in defence of the Crown’s interests, bans Amos from prophesying against Israel and expels him from the land. Thus, it is the establishment at work against Amos who is focussed on proclaiming God’s Word in its fullness.
Amos’ dispute with Amaziah is of the essence to understand not only Amos’ mission but that of all prophets. This is not simply a page from the past but an echo of the reality of our day and age. How many laypeople and ecclesiastical leaders have the pluck to defend the Church and the community? How many of us are ready to stand up to individuals and governments, worldly philosophies and political currents? How many stick by the Gospel values and announce God’s Word freely, frankly and fearlessly?
Jesus picked up from where the Jewish establishment had left off, rejecting God’s plan. Sick of cowardly, ungrateful, and duplicitous leaders, Jesus prepares the apostolic leadership. He demands no fanfare but simplicity; He seeks no money but dedication; there would be no godfathers but only God the Father to depend on. He called to Him the Twelve and sent them out two by two, according to the Jewish custom, so that they could not only assist each other but also be witnesses as required by the law.
Yet, Jesus did not bind Himself by the laws of the world but moved by grace. He gave the apostles authority over unclean spirits and exhorted them to be unattached to any form of worldliness. Like Amos who had made it clear that he was not a ‘professional’ or paid prophet, Jesus ‘charged them to take nothing for their journey except a staff; no bread, no bag, no money in their belts; but to wear sandals and not to put on two tunics.’ Their mission was never to be an enterprise for profit but a selfless and generous service.
Jesus bolstered the apostolic spirit with bold directives. When the apostles arrived in a town, they were to seek a hospitable household. If a place did not receive them or refused to hear them, they were to shake off the dust from their feet (a ritual that the Jews themselves would practise when they returned from pagan lands) ‘for a testimony against them’. To Jesus, Jews who did not receive the Good News were pagans indeed! And it was a testimony against them, in the sense that none but them would be responsible for the judgement that would come upon them, more terrible than that of Sodom and Gomorrah.
Elsewhere in the Gospels, a lesson in the art of diplomacy is summed up for us, the contemporary Church: ‘Behold, I send you forth as sheep in the midst of wolves; be ye therefore wise as serpents and harmless as doves’ (Mt. 10: 16) This teaches us that Christians should not behave like cattle on the way to the slaughter house; and our Church should stop beating herself up for accusations made out of the historical context. ‘Let your communication be, Yes, yes; No, no: for whatsoever is more than these comes of evil' (Mt 5:37). Yet, as St Paul reminds us, ‘To the weak I became weak, so that I might win the weak. I have become all things to all people, that I might by all means save some.’ (1 Cor 9: 22)
Thus, Christians must be wise, diligent and live by divine grace. The Apostle of the Gentiles, in the Second Reading (Eph 1: 3-14) today, very particularly reminds us that God chose us even before He founded the world, that we may be His children through Jesus Christ according to the purpose of His will and for the praise of His glory. This is considered a glorious hymn to God for His marvellous plan through Christ and His Apostles. Thus, apostolic management is an integral part of God’s plan of salvation. We are all part of it; we are all apostles!
Discernir o Profeta
Por que é que Jesus, no Evangelho de hoje (Mc 6, 1-6), diz: "Um profeta só é desprezado na sua terra, entre os parentes e em sua casa"?
Depois de ter deixado a casa de Jairo (ver o Evangelho do domingo passado), Jesus empreendeu uma missão pela Galileia, pregando em todas as pequenas aldeias daquela terra. Foi para a sua antiga casa em Nazaré e, no sábado, começou a pregar na sinagoga. Infelizmente, foi recebido com frieza. Em vez de apreciarem e agradecerem a Deus a dádiva do seu divino conterrâneo, os nazarenos menosprezaram-no, dizendo: "Não é Ele o carpinteiro, Filho de Maria e irmão de Tiago, de José, de Judas e de Simão? Não vivem aqui entre nós as Suas irmãs?
Quando as pessoas de bem são rejeitadas, isso pode acontecer por simples falta de seriedade ou por malícia do outro lado. Ou não os damos importância ou os invejamos. Consideramo-los iguais a nós, nada melhores do que nós. Parecem-nos vulgares, incapazes de fazer algo de bom. E quanto melhor os conhecemos, mais provavelmente acharemos neles alguns defeitos. Em suma, olhamo-nos com desdém, pois santo de casa não faz milagre.
Essas situações são muito dolorosas, mas são os caminhos do mundo, dos quais não há melhor resumo do que as palavras do Divino Mestre. Note-se, no entanto, que, enquanto S. Marcos usa uma dupla negativa em "Um profeta não é sem honra, exceto na sua terra...", S. Mateus (13: 57) diz directamente: “Um profeta só é desprezado na sua pátria e em sua casa".
Já reparou como os bem-intencionados são alvo de escrutínio enquanto os enganosamente agradáveis são colocados num pedestal? Foi o que aconteceu no tempo do profeta Ezequiel, que foi enviado ao povo de Israel, uma nação de rebeldes, impudentes e teimosos, que muitas vezes se tinham voltado contra Deus. No entanto, Deus, no seu infinito amor e misericórdia, não os abandonou; enviou-lhes o seu profeta, quer ouvissem ou não. Um dia, aperceber-se-iam de que no seu meio haviam tido um profeta.
Ao longo dos tempos, centenas de santos enfrentaram a rejeição da família e de amigos. De facto, muitas vezes Deus permite que sejamos testados desta forma; é como o ouro a passar pelo fogo da purificação. Diz o falecido escritor brasileiro, Professor Plínio Corrêa de Oliveira: “Porém, Ele costuma provar a confiança de seus servos. Quando isto lhe acontecer, não se suponha abandonado… Quando tudo parecer perdido ou comprometido, aí virá a solução”.[1]
Qual deve ser a nossa atitude numa situação destas? Temos de estender a mão aos outros, no que for preciso. Como diz o mesmo zeloso escritor católico na sua Via Sacra: “Em meu apostolado, Senhor, deverei continuar mesmo quando todas as minhas obras estiverem por terra, mesmo quando todos se conjugarem para atacar-me, mesmo quando a ingratidão e a perversidade daqueles a quem quis fazer bem se voltem contra mim”.[2]
É este também o espírito de São Paulo que, na Segunda Leitura de hoje (2 Cor 12, 7-10), afirma: “É, pois, da melhor vontade que porei a minha glória sobretudo nas minhas fraquezas, para que a força de Cristo se estabeleça em mim. Por amor é que sinto prazer nas fraquezas, nas afrontas, nas adversidades, nas perseguições e nas angústias sofridas por Cristo. Pois, quando me sinto fraco, então é que sou forte".
São esses os verdadeiros profetas. Do mesmo modo, todos nós que recebemos os dons baptismais de sacerdote, profeta e rei, não devemos fazer concessões baratas, seja nas nossas conversas, nas nossas escolhas, no nosso vestuário, na companhia que mantemos, naquilo que pensamos e ensinamos. Não devemos desnaturar a Igreja e, com a nossa conduta, dar a entender que já não há nada de sagrado. Por fim, não devemos ter sentimentos de desprezo ou inveja, pois alguém pode muito bem ser uma dádiva de Deus.
Dito isto, devemos apenas estar atentos aos frutos que uma pessoa produz, pois, muito tragicamente, há aqueles que distorcem a natureza do mandato evangélico, fogem às suas responsabilidades e, pior ainda, dão contra-testemunho e escândalo de mau exemplo. Sobre eles, Jesus fez esta advertência: "Acautelai-vos dos falsos profetas, que se vos apresentam disfarçados de ovelhas, mas por dentro são lobos vorazes". (Mt 7, 15)
O Papa Paulo VI, na sua Exortação Apostólica Evangelii nuntiandi, afirma: "O homem contemporâneo escuta com melhor boa vontade as testemunhas do que os mestres, dizíamos ainda recentemente a um grupo de leigos, ou então se escuta os mestres, é porque eles são testemunhas… Será pois, pelo seu comportamento, pela sua vida, que a Igreja há de, antes de mais nada, evangelizar este mundo; ou seja, pelo seu testemunho vivido com fidelidade ao Senhor Jesus, testemunho de pobreza, de desapego e de liberdade frente aos poderes deste mundo; numa palavra, testemunho de santidade.” (EN n. 41)
Assim, o verdadeiro desafio atual é separar o trigo do joio e discernir o verdadeiro profeta. Se este não marcar pela autenticidade, a maré passará da admiração e da simpatia à incredulidade e/ou à rejeição, e por ela não serão responsáveis nem Deus nem o povo, mas o tal profeta.
[1] https://www.pliniocorreadeoliveira.info/OUT_001960_conselhosvidaintelectual.htm
[2] https://www.pliniocorreadeoliveira.info/1951_003_CAT_Via_Sacra_CAT.htm
Discerning the Prophet
Why does Jesus in today’s Gospel text (Mk 6: 1-6) say ‘A prophet is not without honour, except in his own country, and among his own kin, and in his own house’?
After Jesus had left the mansion of Jairus (see last Sunday’s Gospel), He undertook a mission through Galilee, preaching in every little hamlet of that land. He went to his old home in Nazareth and on the Sabbath began to preach in the synagogue. But alas, He met with a cold reception. Rather than appreciate and thank God for the gift of their divine townsman, the Nazarenes belittled Him, saying, ‘Is this not the carpenter, the son of Mary and brother of James and Joses and Judas and Simon, and are not his sisters here with us?’
When good people meet with rejection, this could be out of plain lack of seriousness or out of malice from the other side. We either take them for granted or we envy them. We consider them just like us, nothing better than us. They look ordinary, incapable of any good. And the better we know them, the more likely we will find fault with them. In short, familiarity breeds contempt.
Such situations are very painful, but then, such are the ways of the world, of which there is no better summary than the words of the Divine Master. It may be noted, however, that while St Mark uses a double negative in ‘A prophet is not without honour, except in his own country…’, St Matthew (13: 57) puts it straightforwardly as: ‘A prophet is respected everywhere except in his hometown and by his own family.’
Have you noticed how the well-intentioned come under the scanner while the deceptively pleasant stand on a pedestal? It was the same in the times of the Prophet Ezekiel. He was sent to the people of Israel, a nation of rebels, impudent and stubborn, who had often turned against God. Yet, God in His infinite love and mercy, did not abandon them; He sent them His prophet, whether or not they heard or refused to hear. One day they would realise that they had had a prophet in their midst.
Down the ages, hundreds of saints faced rejection from family and friends. In fact, God often allowed them to be tested in this way; it was like gold going through the fire of purification. The late Brazilian writer, Professor Plínio Corrêa de Oliveira, says: ‘It is very true that God often tests our confidence. When He does, do not deceive yourself into believing that God has abandoned you. It is when all seems lost that the way out is closest at hand.’[i]
What should be our attitude in such a situation? We have to reach out to others through thick and thin. As the same zealous Catholic writer says in his Way of the Cross: ‘I must continue my apostolate, even when all my works have tumbled to the ground, even when all have joined together to attack me, even when the ingratitude and perversity of those to whom I have wished to do good have turned against me.’[ii]
Such is also the spirit of St Paul who, in today’s Second Reading (2 Cor 12: 7-10), states: ‘I will more gladly boast of my weaknesses that the power of Christ may rest upon me. For the sake of Christ, then, I am content with weaknesses, insults, hardships, persecutions, and calamities; for when I am weak, then I am strong.’
So much for the true prophets. Similarly, you and I have received the baptismal gifts of priest, prophet and king are not to make cheap concessions, be it in our talk, in our tastes, in our attire, in the company we keep, and in what we think and what we teach. We ought not to denature the Church and by our conduct imply that there is nothing sacred anymore. Finally, we should have no feelings of disregard or envy, for someone might well be a Godsend.
Having said that, we should only be alert to the fruits a person produces, for, very tragically, there are those who distort the nature of the Gospel mandate, shirk their responsibilities, and worse, give counter-witness and scandal of bad example. About them, Jesus issued this warning: ‘Beware of the false prophets, who come to you in sheep’s clothing, but inwardly are ravenous wolves.’ (Mt 7: 15)
Pope Paul VI, in his Apostolic Exhortation Evangelii nuntiandi, states: "Modern man listens more willingly to witnesses than to teachers, and if he does listen to teachers, it is because they are witnesses...It is therefore primarily by her conduct and by her life that the Church will evangelize the world, in other words, by her living witness of fidelity to the Lord Jesus - the witness of poverty and detachment, of freedom in the face of the powers of this world, in short, the witness of holiness". (EN n. 41)
So, the real challenge today is to separate the wheat from the chaff and discern the true prophet. If he does not fit the bill, the tide will turn from admiration and sympathy to incredulity and/or rejection, for which neither God nor the people but the so-called prophet alone will be responsible.
[i] https://www.pliniocorreadeoliveira.info/UK_00_passion_for_truth.htm
[ii] https://www.pliniocorreadeoliveira.info/the-way-of-the-cross/#gsc.tab=0
Passando da morte para a vida
É realmente uma questão de vida e morte. Surgem nas leituras de hoje todas as questões com que nos deparamos quando pensamos na vida – incluindo a questão da morte. A vida e a morte estão tão indissociavelmente ligadas que diríamos que a morte é um dos grandes acontecimentos da vida. E, para nós, cristãos, é uma questão de esperança, pois faz da morte uma vírgula, não um ponto final; a vida continua quando atravessamos para a outra margem, onde nos espera a visão beatífica.
É, pois, muito simbólico que Jesus, no texto evangélico (Mc 5, 21-43) de hoje, tenha atravessado de barco para a outra margem, tendo aí entrado Jairo, que outrora procurara Jesus no caso do centurião romano. Desta vez, temia pela sua filha, que estava à beira da morte. O chefe da sinagoga caiu aos pés de Jesus, admitindo assim a divindade do Mestre. De facto, quando Jesus chegou a casa dele, a menina já tinha morrido. Por quê esse “atraso” da parte de Jesus? Não só os discípulos acharam inútil que Ele fosse a casa de Jairo, como até o povo se riu d'Ele por ter dito que a criança "não morreu, está a dormir".
Claro, o Autor da Vida é que sabia melhor. Disse: "Talitha, cumi: Menina, Eu te ordeno: levanta-te!" e a menina de doze anos ergueu-se e começou a andar. Observa o Evangelista como todos "se encheram de pasmo"… Também connosco se passa isto, porém, receamos falar da morte, como se ela fosse o fim e não a continuação da vida! Ignoramos a exortação de Jesus, "Não tenhas receio. Crê somente", e por vezes não acreditamos; mas nem por isso deixamos de temer. Não é de admirar que pensamentos horríveis nos assaltem.
O poeta britânico Wilfred Owen, inquietado com a morte na guerra de um jovem colega soldado, escreveu "Futility" (Futilidade). Eis a sua pergunta: "Foi para isso que o barro tomou forma?" Sim, humanamente falando, é natural querer afastarmos da morte; por outro lado, como podemos deixar de ver a sua inevitabilidade? Aceitá-la seria ganhar metade da batalha; e logo, vendo como a morte é certa, embora incerta a hora, começaríamos a confiar e a alegrar-nos no Senhor. Ele é o Alfa e o Ómega; o Caminho, a Verdade e a Vida. "Eu sou a Ressurreição e a Vida", disse Ele, "aquele que crê em Mim, ainda que morra, viverá" (Jo 11: 25-26). É por isso que, no Credo, afirmamos: "Creio… na comunhão dos santos, na remissão dos pecados, na ressurreição da carne e na vida eterna". Note-se: "Creio" e não "Temo"!
Esta é a Boa Nova da Salvação, a verdadeira sabedoria. E a Primeira Leitura, tirada do Livro da Sabedoria (1, 13-15; 2, 23-24) esclarece que "não foi Deus quem fez a morte, nem Ele se alegra de os vivos perecerem... Deus criou o homem para ser incorruptível e fê-lo à imagem do que Ele é em Si mesmo. A morte entrou no mundo pela inveja do demónio, e os seus partidários sentem-lhe os efeitos".
Ou seja, Deus não destinara o homem para a morte; contrária aos planos de Deus Criador, entrou no mundo através do Pecado Original. (Cf. Catecismo n.º 1008). Essa obra dos nossos primeiros pais trouxe-nos indescritíveis sofrimentos. Sem dúvida, há muito de bom no mundo, mas também muito sofrimento; por isso, a morte não deixa de ser um alívio – "um remédio", como lhe chama Santo Ambrósio!
No entanto, tal como Job, estamos sempre perante a questão da vida e da morte. Dada a nossa fraqueza, não conseguimos lidar com ela com confiança. Por isso, o melhor seria fazer um balanço positivo, louvar a Deus e confiar mais Nele do que no mundo. Em cada momento da nossa vida, Ele resgata-nos do mal, como fez com a mulher hemorrágica do Evangelho, a qual tocara nas suas vestes com profunda fé. Temos de admitir que, com o pecado, a ingratidão se insinuou na natureza humana: cega-nos para a verdade, porém, como diz o Salmo, é Deus que nos ajuda sem cessar e converte o nosso luto em exultação.
O segredo de uma vida sábia e feliz reside, portanto, em acreditar e confiar no Senhor que fez o Céu e a Terra; e em socorrer os nossos irmãos menos afortunados, preocupando-nos pelo seu bem material e espiritual. São Paulo, na Segunda Leitura (II Cor 8: 7, 9, 13-15), sublinha que a nossa riqueza na fé, na eloquência, no conhecimento da doutrina, em toda a espécie de atenções e na caridade deve ser acompanhada da generosidade. De Nosso Senhor diz que, "Ele, que era rico, fez-se pobre por vossa causa, para que vos tornásseis ricos pela sua pobreza".
Não importa coisa alguma do que possa parecer contradição para os sábios deste mundo; devemos é evitar que os nossos pensamentos sejam terrenos. De facto, para nós, que acreditamos n'Ele, a zombaria ou a pobreza que sofremos é garantia da bem-aventurança e das riquezas que um dia viremos a gozar. Quando morremos para o mundo, nascemos para o Céu. É literalmente uma questão de vida e morte.
Back from death to life
It is literally a matter of life and death. All the questions that hit us when we think about life, come up in the Readings today – including the question of death. Life and death are so inextricably linked that we can say that death is one of the great events of life. And for us Christians, this is a matter of hope, as it makes of death a comma, not a full stop; life continues when we cross on to the other side, where we are destined to enjoy the beatific vision.
It was very symbolic, then, that Jesus in the Gospel text (Mk 5: 21-43) crossed in the boat to the other side, and there came Jairus, who had once sought Jesus’ help on behalf of the Roman centurion. This time, he feared for his own little daughter who was at the point of death. The head of the synagogue fell at the feet of the Master, whose divinity he unwittingly admitted. In fact, by the time Jesus got to his house, the girl was dead. Apparently, Jesus was ‘late’, and not only did the disciples think it pointless for Him to proceed to Jairus’ house, even the people laughed at Him for saying that the little girl was ‘not dead but sleeping.’
Of course, the Author of Life knew better. He said, ‘Talitha, cumi: Little girl, I say to you, arise!’ and the twelve-year old sprang to her feet and walked. The Evangelist observes that ‘they were overcome with amazement.’ Which is the same with us today, yet, we dread any talk of death, as though it is the end, not a continuation, of life. In disregard of Jesus’ exhortation ‘Do not fear, only believe’, we sometimes fail to believe but never fail to fear. No wonder, ghastly thoughts assail us.
Piqued by his young soldier friend who died in the war, British poet Wilfred Owen, wrote ‘Futility’, asking, ‘Was it for this the clay grew tall?’ Yes, humanly speaking, it is natural to not want to die; but then, can’t we accept its inevitability? This would be half the battle won; and once we accept that death, even though not the hour, is certain, we would begin to trust and rejoice in the Lord. He is the Alpha and the Omega; the Way, the Truth, and the Life. ‘I am the Resurrection and the Life,’ He said, ‘He who believes in Me will live, even though he dies’ (Jn 11: 25-26). That is why in the Apostles’ Creed we say: ‘the communion of saints, the forgiveness of sins, the resurrection of the body, and the life everlasting.’ ‘I Believe’, we call it, not ‘I Fear’!
This is the Good News of Salvation, true wisdom indeed. And the First Reading from the Book of Wisdom (1: 13-15; 2: 23-24) makes it clear that ‘God did not make death, and He does not delight in the death of the living… God created man for incorruption, and made him in the image of His own eternity, but through the devil’s envy death entered the world, and those who belong to his party experience it.’
That is to say, God had not destined man to die; death was contrary to the plans of God the Creator, and entered the world through Original Sin. (Cf. CCC # 1008) It was of our first parents’ making, which has brought us untold suffering. No doubt, there is a lot of good in the world, but there is also a lot of suffering; as a result of which, to eventually die is a relief – ‘a remedy’ as St Ambrose calls it!
Nonetheless, we are, like Job, faced with the question of life and death. Given our limitedness, we fail to handle it with confidence. It would be better, then, to put a positive spin on it, praise God and trust in Him rather than in the world. At every moment of our life, He rescues us from evil, as he did to the bleeding woman in the Gospel, who had touched his garment in deep faith. We must admit that with sin, ingratitude has crept into human nature: it blinds us to the truth, but as the Psalm reminds us, God it is who helps us without ceasing and changes our mourning into dancing.
The secret of a wise and happy life, then, lies in believing and trusting in the Good Lord who made Heaven and Earth; and in giving relief to our less fortunate brethren, in having due concern for their material and spiritual good. St Paul in the Second Reading (2 Cor 8: 7, 9, 13-15) stresses that our excellence in faith, utterance, knowledge, earnestness and love, must be accompanied by such gracious work. Of Our Lord he says that, ‘though He was rich, yet for your sake He came poor, so that by His poverty you might become rich.’
Never mind what may look like contradictions to the worldly wise, we must shun thought processes that are earthly. Indeed, to us who believe in Him, the mockery or the poverty we suffer is a guarantee of the blessedness and riches we will enjoy. When we die to this world, we are born to Heaven. This is very literally a matter of life and death.