Mário: artista genial, primo e amigo
Quando eu era criança, e o nosso primo Mário Miranda nos vinha visitar ou passar uns dias connosco em Pangim, além do prazer de o ter connosco, lembro-me que havia sempre uma certa dose de ansiedade em casa durante a sua estadia, pois acontecia invariavelmente qualquer coisa de extraordinário que seria sem dúvida documentado em caricaturas nos seus famosos diários.
O problema era que os diários do Mário não eram privados, e eram muito populares. Andavam emprestados de casa em casa dos primos e amigos, e todos ficavam a saber o que se tinha passado de cómico e ridículo nas nossas casas. Claro que os acontecimentos se tornavam ainda mais ridículos na perspectiva humorística dum caricaturista como ele.
Eu sempre tive uma grande admiração pelo génio da arte extraordinária do Mário, que tinha duas características que eu admirava em particular – uma era o imenso sentido do ridículo que ele captava nas situações que para o resto do mundo podiam passar despercebidas. E isso não se pode ensinar nem treinar. É um dom de nascença, é o tal génio. E a outra característica era a santíssima paciência com que ele desenhava algumas das caricaturas extremamente complexas e detalhadas. Esses trabalhos deram-me sempre azo a muitas oportunidades de rir às gargalhadas cada vez que descobria mais cantos e recantos cómicos quando revia as caricaturas.
Mais tarde quando ele começou a captar os cenários e paisagens que o atraíram em vários países para onde foi oficialmente convidado para interagir com caricaturistas célebres, ele foi desenvolvendo um novo estilo e uma meticulosa técnica de desenhar, para a qual era preciso ter não só visão e precisão, mas também muita paciência – o resultado foi uma grande e esplêndida colecção de ilustrações lindíssimas, que enriqueceram enormemente o património artístico do Mário.
O interessante é que a arte do Mário foi totalmente autodidáctica. Embora se tenha matriculado na famosa Sir J. J. School of Art em Bombaim, ele só foi um dia para as aulas, disse-me ele, e não gostou. E esse foi o começo e o fim do treino de arte que ele teve. Por sinal, eu também frequentei a mesma escola muitos anos depois do Mário. Mas no fim do primeiro ano disseram-me que não havia esperanças de eu algum dia ser artista. O Mário disse-me que isso era bom sinal, pois ele durou só um dia nessa escola, e o amigo dele, o famoso pintor goês Francis Newton de Souza, de reputação internacional, também só passou brevemente por essa escola. Portanto, concluiu que eu estava em muito boa companhia. E, pelos vistos, estava.
O Mário começou a produzir os seus diários ilustrados aos 9 anos, encorajado pela Mãe, a nossa Prima Zulema, e acabou por produzir uma obra que, em qualidade e quantidade, é hoje uma das maiores e mais memoráveis heranças artísticas de Goa, um património excepcional que, além do mais, retratou uma época da vida em Goa, com humor, e que hoje nos deixa saudosos.
Eu cresci a ver e a apreciar as caricaturas do Mário, a ponto de, sem eu dar por isso, ficar muito influenciada pelo seu estilo. Foi praticamente uma “osmose”. Ele sempre me encorajou a desenhar e a pintar, e o facto é que até hoje dá-me imenso prazer poder comentar e criticar através de caricaturas.
Depois de casado, o Mário além do trabalho no Times of India, trabalhava muitas tardes em casa, num cantinho do seu apartamento em Bombaim, pois estava inundado de trabalho. Eu sentava-me em frente da mesa dele, num banco, com uma caneca de chá na mão e conversávamos durante horas.
Enquanto trabalhava nas caricaturas, ele não tinha outro remédio senão ouvir a minha conversa, que no fundo o divertia. Ao mesmo tempo, eu ia observando o desenvolvimento dum simples e rápido esboço dele no papel a transformar-se nas fabulosas caricaturas que na altura tanto fizeram rir a Nação Indiana.
Tive sempre muito orgulho nos nossos laços de família, mas foi um privilégio para mim termos sido também muito amigos quando eu me tornei adulta e fui estudar em Bombaim. Participámos em muitas farras durante as quais as observações do Mário nas nossas conversas me faziam rir. Nas festas improvisadas, lá no seu apartamento, quando ele não estava a acompanhar a musicata que fazíamos com os seus bongos cubanos, nós divertíamo-nos a dançar e nunca perdíamos a oportunidade de fazer os nossos passos de dança cómicos da praxe.
Mas tenho mais saudades dos raros e preciosos momentos de calma que passámos sentados à tardinha, na varanda da casa de Loutulim, durante as minhas últimas visitas a Goa. Ficávamos relembrando histórias dos nossos antepassados, muitas delas que tinham sido contadas pelo meu Pai (António MIranda), e com muita piada, lembrava-se o Mário, e que se haviam passado mesmo nessa casa de Loutulim onde estávamos. Esses foram momentos que estreitaram ainda mais os laços de família, amizade e afeição. Quando o Mário nos deixou criou um vazio que nunca se preencherá, pois foi o fim duma era.
Carmita *
* Carmen Miranda nasceu em Goa e ora vive em Londres. Estudou no Liceu Nacional Afonso de Albuquerque, de Pangim, e cursou BA em Design da Informação pela Universidade de Kent, RU, e MA em Relações Internacionais e Desenvolvimento pela City University, Londres. Conhecida como Carmita, também é cartunista, influenciada pela obra de Mário.
Mário: sem malícia e sem sarcasmo
Mário Miranda (a quem adiante tratarei por tio Mário) era irmão de meu pai Pedro Miranda e de Fátima Miranda Figueiredo, minha tia. Três Irmãos, todos eles especiais.
Vivendo eu na Parede, Portugal, e eles (os meus tios e avó), em Goa, só os conheci por volta dos sete ou oito anos. A distância era grande e, na altura, as viagens não eram tão populares como agora.
O tio Mário viera para Lisboa como bolseiro da Fundação Gulbenkian. O primeiro encontro ao vivo com o tio Mário foi para mim inesquecível. Quando o vi ali sentado na sala ao lado do meu pai, fiquei desde logo encantada. Parecia que já o conhecia, tantas foram as histórias contadas pelo meu pai, os cartoons e as fotografias que ele nos mostrava. Mas o que mais me impressionou foi o seu olhar sorridente e penetrante, que parecia ver mais além.
Era naturalmente com este olhar que o tio Mário olhava o mundo. Sem malícia e sem sarcasmo conseguia que as pessoas se rissem de si próprias e do que as rodeia. Como o ouvi afirmar numa entrevista: “I don’t laugh at people, I laugh with people”.
Nesse primeiro encontro o tio Mário foi parco em palavras. Mas rapidamente fez uma caricatura de mim e da minha irmã, cada uma a servir uma chávena de chá fumegante que tínhamos acabado de lhes trazer. Destacando os nossos traços menos favoráveis, o desenho era hilariante.
O tio Mário partiu então para o seu périplo europeu mas continuei a acompanhar os seus trabalhos à distância.
Quando a coleção de cartoons Laugh It Off foi publicado, este tornou-se um dos meus livros favoritos. Não só me fazia rir, com os diferentes tipos e personagens que criava como me dava a conhecer realidades diferentes e distantes. O tio Mário era de facto exímio na apresentação pormenorizada e meticulosa de quadros sociais de um país tão diverso como a Índia.
Ainda hoje essa primeira edição do livro, muito usado e bastante danificado, faz as delícias dos meus netos.
Foi por isso que, por sugestão da minha neta Maria Rita, a altura com 5 anos, e a pedido da sua professora Ana que, em 2019, fiz uma apresentação de desenhos do tio Mário na sala dos 5 aos do Patronato de Santo António de Beja. Foi um sucesso.
As crianças ficaram entusiasmadas e fizeram trabalhos sobre o autor a quem já chamavam tio Mário.
Contei-lhes que o tio Mário era de poucas falas, que comunicava antes através dos seus desenhos e que desde pequeno fazia desenhos nas paredes até que a sua mãe lhe comprou um caderno a que chamou de “Diário”. Nunca mais se esqueceram do tio Mário.
Estes foram os desenhos que eles mais gostaram!
Mas o longo percurso artístico do tio Mário não se limitou aos cartoons e desenhos. Procurou formas artísticas mais profundas de representação do que via à sua volta. Veja-se, por exemplo, as ilustrações de cidades e ambientes que conheceu, como em Winter in Germany, as imagens de Nova Iorque, Paris, Japão ou Lisboa. Conseguia sobretudo captar a essência, a alma dos sítios por onde passava.
Durante uma curta estadia em Baleizão, no Alentejo onde moro, deu um passeio a pé, à noite e, mais tarde, pintou o quadro que ele me ofereceu e apresento ao lado. Quem conhece Baleizão percebe que ele não só viu como sentiu Baleizão e captou a sua alma.
Muito ficou por dizer sobre o homem e sobre o artista genial e cativante que era Mário Miranda de quem tenho as melhores memórias e uma enorme saudade.
Maria Luisa Miranda de Castro e Brito *
* Professora, Licenciada em Filologia Germânica e Pós-graduada em Estudos Culturais e Estudos Americanos
Carta ao Primo Mário
Mário Miranda, meu primo e grande amigo, o que é que eu posso dizer a teu respeito que as pessoas ainda não saibam? Quando nos deixaste, já eras quase mundialmente conhecido, assim como os teus trabalhos de caricaturista e os outros mais sérios. Mas é essa tua faceta de caricaturista que eu quero recordar aqui nestas poucas linhas.
Eras um artista nato e, até um certo ponto, um autodidata. Tinhas o condão de nos fazer rir e soltar umas boas gargalhadas, mesmo sem escrever ou pronunciar uma única palavra! Bastava-nos olhar para as tuas caricaturas para desatarmos a rir e de cada vez que olhávamos para elas, encontrávamos sempre novos motivos de riso.
Sempre foste de poucas palavras, mas, em compensação, tinhas um poder de observação fotográfico que, mais tarde, transferias para os teus diários. Eu ficava admirada com este teu dom e perguntava-me como é que o Mário consegue reter na sua memória tanta coisa e com tantos detalhes que ele mostra nos seus desenhos? Só um génio ou uma pessoa privilegiada o consegue e tu eras um privilegiado nesse aspecto e eu sempre te admirei muito por isso.
As tuas caricaturas são de um realismo tal, que as pessoas por ti caricaturadas parecem seres vivos em miniatura, prontos a saltar do papel para o nosso colo! E a semelhança é de tal ordem, que podem ser facilmente reconhecidas e identificadas, mesmo tratando-se de desconhecidos…
A propósito vou contar um pequeno episódio passado comigo. Havia um senhor cujo nome não me ocorre agora, mas que podemos chamar o senhor ABC e que tu representavas nas tuas caricaturas com uma certa frequência. Um belo dia em que eu estava em Damão fui visitar a senhora Dona Bolina, a tua avó materna e, qual não foi o meu espanto, quando eu ia a entrar e vi sair de lá esse tal senhor, que para mim era um ilustre desconhecido! Não resisti à curiosidade e perguntei-lhe se ele era, por acaso, o senhor ABC. E ele respondeu-me: “Sou!” e, acto contínuo, com um ar muito espantado, perguntou-me de onde é que eu o conhecia ao que lhe respondi que era do Diário do Mário!
Lina*
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* Maria Carolina Miranda Bordadágua nasceu em Pangim, Goa, em 1925, e ora vive em Lisboa. Fez o curso no Liceu Afonso de Albuquerque em Goa e o BA em Bombaim. Foi Professora de Português, Inglês e Francês no Liceu Nacional Afonso de Albuquerque. É viúva do Coronel do Exército António da Graça Bordadágua e mãe de Luís Filipe Miranda Bordadágua e de Maria Margarida Miranda Bordadágua.
Reconhecimento: Artigo publicado na Revista da Casa de Goa, Série II, No. 12, Set-Out 2021.
Último olhar às preciosas mãos
“Errar é humano, perdoar é canino”, dizia o Mário numa pequena publicação comemorativa dum Canil, algures na Índia, por ele ilustrada.
O amor e afeição que o Mário tinha para com os animais só se podia igualar com os sentimentos da Mãe dele. Lembro-me que em Borim depois de se atravessar a ponte metálica sobre o Zuari, a carreira, rumo a Pangim, parava por algum tempo para receber mais passageiros numa viatura já superlotada. Nessa paragem, além de vendedores de fruta, lanhas, bebidas gasosas e fios de zaiôs (uma variedade de jasmim) que vinham junto à viatura, também apareciam periquitos engaiolados. A minha Mãe comprava esses pássaros, soltava-os e devolvia as gaiolas ao radiante vendedor que podia apanhá-los e vendê-los novamente! Outrossim, no enclave de Cabinda, os nossos gatos siameses eram mimosiados com atum fresco do oceano Atlântico, que se arranjava raramente e com bastante dificuldade, enquanto o genro tinha que se contentar com nosso limitado estoque de sardinha enlatada! Isso porque em Angola faltava toda espécie de géneros alimentícios e de combustíveis, após a Revolução de 1974 em Portugal.
Em Loutulim, tínhamos um mini aviário, mormente para ovos. A maioria das galinhas eram batizadas pelo Mário. Uma delas, que aparecia sempre ao pequeno almoço, era a Madame Frufru. Quando uma dessas aves, ou um galo a mais, era transformado em caril de Goa ou dampaca de Damão, o Mário não tocava no prato. A desolação era também intensa quando algum dos nossos muitos caninos rendiam a alma ao Criador. Lembro-me vivamente quando o nosso altivo Rapaz Rodrigues Raposo e o ilustre Farrusco Santana Dentuça nos deixaram após bastantes anos de fiel e alegre companhia, incluindo nos passeios do Mário na aldeia. Recordo-me que naqueles dias tristes o Mário não fez nenhuma refeição, fechando-se no quarto, que mais tarde viria a ser o seu estúdio de trabalho.
Esse mesmo amor o Mário dedicou à sua arte nata, que se desabrochou graças a embirração da nossa Avó paterna com os rabiscos dele nas paredes da casa. A Mãe, para acalmar os ânimos da sogra, deu um diário ao Mário, sugerindo que ele desenhasse todos os dias algum acontecimento interessante. Essa simples ideia materna foi o início, aos 7 anos, da carreira artística deste jovem envergonhado, de poucas palavras mas com piada, e com um dom de observação quase sobrenatural. Um dia o Mário disse-me: “O meu trabalho é uma constante oração”.
Os diários que a Mãe passou a oferecer-lhe no Natal de cada ano, mais tarde em papel de desenho, especialmente encadernado em Pangim, levando o ano e o nome na lomba, passavam de mão em mão dos primos, dos amigos e mesmo do Governador e Patriarca. Lembro-me do Patriarca D. José da Costa Nunes, que, segundo consta, deleitava-se com as caricaturas dos clérigos.
Quando jovem, o Mário tinha uma cabeleira bem espessa e um dos meus passatempos era fazer pequenas tranças do seu cabelo, enquanto ele registava acontecimentos no seu Diário. Nunca se aborreceu nem parou de desenhar. Nota-se que eu tinha apenas 5 ou 6 anos e ele estava já nos estudos universitários. Possuía o dom de trabalhar e conversar simultaneamente. Um dos outros passatempos, mas esse proporcionado por ele, era o piano, que aprendeu com a Mãe, e que eu ouvia com grande admiração. Imaginava-se pianista concertista fazendo vénias aos calorosos aplausos dos espectadores! Nunca pensou que iria fazer uma carreira como caricaturista, graças aos Diários que lhe abriram as portas.
O Mário não foi apenas caricaturista. Tem uma imensidão de obras sem caricaturas. Quase no fim da vida produtiva, concordou que os pequenos traços com os quais criava imagens monumentais teriam sido uma autoterapia inconsciente. Nunca posso cessar de admirar o volume do seu trabalho. Se pensarmos nas 365 entradas no diário, ao longo de pelo menos 18 anos, temos 6,570 desenhos compostos de caricaturas, retratos, pinturas de paisagens e figuras a cores. Ele também redigia com bastante humor. Pena que o tempo não lhe permitiu desfrutar mais desse seu outro dom.
Desabafou um dia que queria ter tempo para fazer o que mais gostava: experimentar cores pintando a natureza em aguarela. Constantes prazos a serem cumpridos para o ganha-pão não o tinham ainda permitido esse luxo. A rigidez nas mãos impediram mais obras. Contudo, fez várias tentativas a lápis e aguarela, sendo cinzento claro a cor dominante, assemelhando nuvens, com pequenas manchas em rosa leve. Observação minuciosa desses borrões cinzentos, junto das manchas rosas, via-se o que parecia mini escaleres. Talvez recordação de Damão, sua terra natal. Não sei qual foi a sorte desses últimos trabalhos desse génio. Quiçá a mesma que dezenas deles tiveram quando o Tommy, o grande amigo canino, resolvia censurar aqueles que ele encontrava no chão do estúdio no apartamento em Bombaim, levantando a perna!
O último companheiro canino em Loutulim foi o Happy, nome dado pelo seu neto. Este, aliás alegre canino, traumatisado com a imobilidade do Mário, tentava saltar para junto do seu corpo, gemendo. Olhando pela última vez aquelas bonitas e preciosas mãos, ora atadas como que em prece, fiz com que o fiel amigo dele me acompanhasse para um passeio junto à Natureza, tanto apreciada pelo Mário, cogitando que afinal tudo o que é bom dura tão pouco.
Baizu, Biggle, irmã do Mário Miranda*
(Imagens: www.mariodemiranda.com)
* Maria de Fatima do R B M Figueiredo (1942-), natural de Bangalore. Meio século de trabalho: Portugal, Angola, Reino Unido, em diversas empresas particulares, consulado, embaixada e escritório de advogados. Actualmente em Goa com marido, no novo avatar como agricultores.