Utopia ou distopia? | Utopia or dystopia?

Editorial

Utopia ou distopia?

Sem que isso tivesse sido planeado, o presente número da nossa Revista lança um olhar crítico sobre o passado e o presente de Goa e abalança-se sobre o seu futuro.

Para começar, chamo à atenção ao ensaio intitulado ‘A história e a utopia da viagem’, em que Júlia Serra, depois de retratar Albuquerque e a sua arrojada viagem ao Oriente no século XV, refere-se a três viajantes modernos – o médico Lúcio Augusto da Silva, o jornalista Ernesto Várzea Jr. e Fernando Laidley, um apaixonado pelos automóveis – para quem a viagem de Lisboa a Goa e além, foi utopia, mas também “espaço-tempo de realidade e vivência pessoal”.

Nesse sentido, a figura máxima de viajante e sonhador, na melhor acepção da palavra, foi, sem dúvida, S. Francisco Xavier. Objecto de reflexão no nosso número anterior, é agora relembrado pelo jesuíta Délio Mendonça, que no seu artigo “Pegadas de Esperança” descreve a galeria de pintura goesa, patente na Velha Cidade de Goa por ocasião da Exposição das Sagradas Relíquias do Santo, na qual “uma caraterística comum marcante destas pinturas é a Goanização e a contextualização de Xavier”.

No âmbito da arte musical, noticiamos o vídeo e o cantar público do icónico hino em concanim, “Sam Fransiscu Xaviera”, recentemente traduzido para português pelo nosso editor associado Óscar de Noronha.

Na mesma esteira, a primeira prestação do ensaio em que é historiado o ‘Colonialismo português na Ásia’, o casal Gilbert e Philomena Lawrence não deixa de se referir ao Santo basco, que ficou “gravemente desiludido com o comportamento dos colonos”. Logo depois deixou Goa para trabalhar em territórios não lusitanos do Sul da Índia, Malásia e Japão.

Vê-se, pois, que Goa foi Utopia para um grande número de pessoas de todos os tempos. De entre os da contemporaneidade, V. M. (Nitant) Kenkre, em poema, recorda-se com saudade de “Goa da minha infância”, enquanto no seu ensaio trata mais especificamente das escolas de português que frequentou.

Nos mesmos moldes, Ralph de Sousa dedica-se ao porto de Mormugão, na segunda prestação da série de ensaios sobre as “Luzes dos portos e delícias marítimas”.

Da pena desse colaborador está em destaque o livro Change of Guard (Render da Guarda), ora em avaliação crítica de Heta Pandit.

Que a relação entre Goa e Portugal foi uma aventura multissecular fica comprovado não só pelas excelentes relações humanas entre os dois povos, como também, em particular, pelo seu roteiro gastronómico. É o caso do chacuti que, nas palavras do nosso editor associado José Filipe Monteiro, é “a iguaria mais genuinamente goesa”; e o qual, no conceito do prestigiado crítico Fernando Melo, está em casamento feliz com Casal da Coelheira Private Collection Alicante Bouschet tinto. Saboreiem-nos!

Tão depressa, como alimento para a mente, apresentamos, no Cantinho do Concani, a décima prestação de Adágios Goeses, selecionados do livro Enfiada de Anexins Goeses, de R. B. Barreto Miranda, e transcritos em concani moderno por Óscar de Noronha.

Como ímpar exemplo humano da sabedoria indo-portuguesa, é focada, pela pena de Mário Viegas, a personalidade polivalente de Indalêncio Froilano Pascoal de Mello.

Seria exagerado afirmar que tudo isso aponta para a Utopia que foi Goa, no decorrer dos tempos?

Por outro lado, temos a situação de Goa na actualidade. Ivo de Noronha, no ensaio intitulado “Empreendimentos de luxo em Goa: bênção ou maldição?”, questiona-se sobre o dinheiro que entra e a identidade que vai desaparecendo com a vaga de construções extravagantes em Goa… Oxalá que não seja isso um reflexo da profecia atribuída a S. Francisco Xavier: “Goa ninguém a levará; por si acabará”!

Noticiamos com um misto de sentimentos que o “Mapeamento da morte da floresta de manguezais” em Goa, fotografada por Payal Kakkar, venceu a medalha de prata no Tokyo International Photo Awards 2024. Congratulamo-nos pelo facto de essa situação ambiental suicida ter sido constatada por uma agência estrangeira.

Outra notícia na respectiva secção é a distinção de Abílio Fernandes com medalha de oiro que lhe foi atribuída pelo município de Évora, apreciando o facto de o centro histórico da cidade-museu ter sido elevado pela UNESCO ao estatuto de Património Mundial da Humanidade durante a presidência autárquica do homenageado há 38 anos.

Enquanto deixa um trilho de esperança a actividade cultural de grande relevância que a Fundação Oriente vem exercendo em Goa, como se vê pelo seu desempenho nos últimos dois meses, é muito aguardada a participação da apreciada fadista Cuca Roseta, no Festival do Monte 2025, que comemora os 30 anos dessa instituição em Goa.

Também as aguarelas de Girish Gujar (“Casa na Ilha de Divar”) e de Taniya Shetke (“Abundância divina”); as pinturas de Edgar João (“Murmúrios da Monção”), João Coutinho (“Mahakavi Camõis”), e Rouella Barreto (“A arte do fenim de caju”) são uma agradável brisa vinda dos mais pitorescos locais de Goa, muito embora a pintura de Chaitali Naik (“Festival dos Ladrões”), para não falar da caricatura (“O que resta para comemorar?”) do octogenário Alexyz, façam nascer um sorriso irónico nos nossos lábios.

No meio de tudo isso, em duas cartas ao director, comenta Júlia Serra, primeiro, sobre a reportagem televisiva intitulada “Goa, Coração Português”, da SIC Notícias, que passou em Portugal em novembro do ano próximo findo: “Goa entra nas casas portuguesas” é como intitula o seu apontamento. E logo depois, escreve sobre “Goa e as tradições portuguesas”, que veio a conhecer, através da Agência Lusa, que divulga a situação da língua e cultura portuguesa, e em particular como é celebrada a quadra natalícia em Goa. Dir-se-ia, por isso, que é o caso de Portugal ter entrado nas casas goesas!

Finalmente, o nosso editor associado Valentino Viegas expõe a prata da casa no relato que faz por ocasião do centésimo número da nossa Revista. E, em carta ao director, chama atenção à operação policial realizada na Praça Martim Moniz, em Lisboa, a qual, segundo diz, pôs em risco, “a bela imagem de Portugal multicultural e multirracial, difundida pelo mundo inteiro, a viver em harmonia, paz e sossego, que tanto nos custou a criar”.

Esperemos que Goa, a Aparant, e Lisboa, a Felicitas Julia – duas Utopias do passado – se mantenham fiéis aos seus gloriosos epítetos, e nunca se tornem distopias.

Capa: 'Fios de Goa' (pintura com seringa, acrilico em tela), de Clarice Vaz

Editorial

Utopia or dystopia?

Without any prior planning, the current issue of our magazine has taken a critical look at Goa’s past and present and looks at its future as well.

To start with, I would like to draw your attention to the essay entitled ‘History and the Utopia of Travel’, in which Júlia Serra, after portraying Albuquerque and his daring journey to the East in the 15th century, refers to three modern travellers – physician Lúcio Augusto da Silva; journalist Ernesto Várzea Jr. and car enthusiast Fernando Laidley – for whom the journey from Lisbon to Goa and beyond was a utopia, but also a ‘space-time of reality and personal experience’.

In this sense, St Francis Xavier was undoubtedly the ultimate traveller and dreamer, in the best sense of the word. He was the subject of reflection in our previous issue, and is now remembered by a fellow Jesuit, Délio Mendonça, who in his article ‘Footprints of Hope’ describes the gallery of Goan paintings on display in the Old City of Goa on the occasion of the Exposition of the Sacred Relics of the Saint, and in which ‘a striking common feature of these paintings is the Goanisation and contextualisation of Xavier’.

In the field of music, we report on the video and the public singing of the iconic hymn in Konkani, ‘Sam Fransiscu Xaviera’, recently translated into Portuguese by our associate editor Óscar de Noronha.

In the same vein, the first instalment of the essay on ‘Portugal’s Colonialism in Asia’, by Gilbert and Philomena Lawrence, does not fail to refer to the Basque saint, who was “gravely disappointed by the behaviour of the colonists”. Soon afterwards, he left Goa to work in non-Portuguese territories in South India, Malaysia and Japan.

Apparently, Goa has been Utopia for a large number of people throughout history. In contemporary times, V. M. (Nitant) Kenkre’s poem ‘Goa of my Childhood’ is a nostalgic recollection, while in his essay he deals more specifically with the Portuguese language schools he attended.

Likewise, Ralph de Sousa focuses on Mormugão Port, in the second instalment of a series of essays titled ‘Harbour Lights and Maritime Delights’.

The said writer’s book Change of Guard is critically reviewed here by Heta Pandit.

The fact that the relationship between Goa and Portugal has been an adventure across centuries is proven not only by the excellent human relations that exist between the two peoples, but, in particular, by their gastronomic journey. So is the case of xacuti which, in the words of our associate editor José Filipe Monteiro, is ‘the most genuinely Goan delicacy’; and which, in the prestigious critic Fernando Melo’s view, is happily paired with Casal da Coelheira Private Collection Alicante Bouschet red. Savour them!

Just as quickly, as food for thought, we present, in the Konkani Corner, the tenth instalment of Goan adages, culled from R. B. Barreto Miranda’s book Enfiada de Anexins Goeses and transcribed into modern Konkani by Óscar de Noronha.

As a unique human example of Indo-Portuguese wisdom, Mário Viegas focuses on the versatile personality of Indalêncio Froilano Pascoal de Mello.

Would it then be an exaggeration to say that all of this points to the Utopia that was Goa down the ages?

On the other hand, we have Goa’s situation today. Ivo de Noronha, in his essay titled ‘Luxury developments in Goa: a boon or a curse?’ wonders about the money being earned and the identity being lost with the wave of extravagant constructions in Goa... Let’s hope that this isn’t a telltale sign of a prophecy attributed to St Francis Xavier: “None will take away Goa; it will end by itself”!

We announce with mixed feelings that ‘Mapping the death of mangrove forest’ in Goa, photographed by Payal Kakkar, was awarded a silver medal at the Tokyo International Photo Awards 2024. We are pleased to note that the said suicidal environmental situation has been acknowledged by a foreign agency.

Another news item in the respective section is the municipality of Évora’s award of a gold medal to Abílio Fernandes, in appreciation of the fact that UNESCO elevated the historic museum-city to World Heritage status during his mayorship, thirty-eight years ago.

While the hugely relevant cultural activity that Fundação Oriente has been carrying out in Goa, as seen from its report of the last two months, leaves a trail of hope, the presence of the acclaimed fado singer Cuca Roseta in the forthcoming Monte Festival, on the 30th anniversary of the Foundation’s Goa Delegation, is something to look forward to.

Watercolours by Girish Gujar (‘House on the Island of Divar’) and Taniya Shetke (‘Divine Abundance’); paintings by Edgar João (‘Monsoon Murmurs’), João Coutinho (‘Mahakavi Camõis’), and Rouella Barreto (‘The Art of Cashew Feni’) are like a pleasant breeze from Goa’s most picturesque locations, even while Chaitali Naik’s painting (‘Festival of Thieves’), not to mention octogenarian Alexyz’s cartoon (‘What is left to celebrate?’), bring an ironic smile to our lips.

In the midst of it all, by way of two letters to the director, Júlia Serra comments, firstly, on SIC Notícias’ TV report titled ‘Goa, Coração Português’ (Goa, a Portuguese Heart), which aired in Portugal in November last year: ‘Goa enters Portuguese homes’ is how she titles her note. Soon thereafter she writes about ‘Goa and Portuguese traditions’, which she learnt about from Lusa News Agency’s report on the status of Portuguese language and culture, and in particular the celebration of Christmas in Goa. One may note, conversely, that Portugal has entered Goan homes!

Finally, our associate editor Valentino Viegas showcases the family silver in his piece marking the 100th issue of our magazine. And in a letter to the director, he draws attention to the police operation that happened in Lisbon’s Martim Moniz Square, which, he says, jeopardized ‘the beautiful image of multicultural and multiracial Portugal, spread across the world and living in harmony, peace and quiet, all of which we have worked so hard to create’.

Let’s hope that Goa, the Aparant, and Lisbon, the Felicitas Julia – two Utopias of the past – remain true to their glorious epithets and never turn into dystopias.

Cover: 'Goan Threads' (syringe painting, acrylic on canvas), by Clarice Vaz


Novos temas, novos rumos

Editorial

Como que num piscar de olhos chegámos ao 10.º número da nossa querida Revista. Queira Deus que a possamos acompanhar durante o tempo que for necessário. Não é só um projecto gratificante; é um trabalho importante – dir-se-ia, premente – nos tempos conturbados em que vivemos. Por isso, vivat, crescat et floreat são os nossos votos.

Nunca foi tão urgente, como o é agora, recuperar o passado para o bem do tempo presente e garantia do futuro. Na verdade, está em jogo a vivência goesa, esse modo de estar tipicamente indo-português. Infelizmente, com a velocidade estonteante em que gira o nosso mundo pessoal e colectivo, pouco tempo nos resta para reflexão, para não falar de acção. Por isso, importa que a nossa agenda seja a de reunir o pessoal e pôr mãos à obra.

O acto de reunir os Goeses dispersos pelo Mundo nunca superou, na nossa Revista, aquilo que presenciamos na presente edição, que tem colaboradores das diásporas luso e anglo-goesas. Temos de tudo: uma lenda de Goa pré-cristã e animista, tal qual narra Celina Velho e Almeida, residente em Goa, até à história duma intriga, pouco conhecida, que se passou em Goa, na época da Segunda Grande Guerra, a qual é contada pelo novo colunista, Armand Rodrigues, que vive no Canadá.

Também pouco conhecida da geração moderna é a história da grande aventura que foi a primeira travessia aérea Lisboa-Goa, relatada aqui com pormenor pelo goês lisboeta Francisco Monteiro. De igual modo, o casal Philomena e Gilbert Lawrence, nossos novos  colaboradores, de Nova Iorque, dão uma vista panorâmica da secular ligação entre o povo goês e a Grã-Bretanha, que começou com a breve ocupação de Goa pela tropa inglesa, no fim do século XVIII, e continuou com o recrutamento comercial de goeses por aquele país.

Os nossos leitores irão também deliciar-se com três micro-histórias de Goa, não de somenos importância: José Venâncio Machado, radicado em Portugal, lembra-se com emoção das 153 missas celebradas simultaneamente no largo que estadeia entre a Sé e a Basílica, na Velha Cidade de Goa; Ralph de Sousa relata com verve o vaivém silencioso e apressado de gentes nos transportes fluviais de Goa; e Francisco Monteiro retrata a figura de Paulino Dias, uma das maiores figuras da literatura indo-portuguesa, a quem apelida de “poeta da mitologia hindu”.

Ainda no campo literário, temos Sheela Kolambkar, escritora goesa da língua concani, hoje estabelecida em Bombaim, cujo conto, além de transliterado em caracteres romanos, é também traduzido em português pelo signatário destas linhas; e, mais além, Maureen Álvares, numa entrevista comigo, fala do estado actual da língua e cultura portuguesa no território goês.

Para terminar, no contexto da notícia do lançamento do livro Nacionalidade e Estrangeiros, de Edgar Valles, e a crítica feita por José Filipe Monteiro ao livro Entre dois impérios, de Filipa Lowndes Vicente, volto a realçar que nesta edição da nossa Revista vemos ampliada a nossa visão do Goês como verdadeiro cidadão do Mundo.

Como pano de amostra da nova vitalidade que nos brinda enquanto chegamos à bonita idade de dez edições temos a parceria entre a nossa Revista e The Global Goan, sediada na Oceania. Na verdade, “se mais um mundo houvera, lá chegara”.

É claro que, ao fim e ao cabo, o importante não é chegar algures mas, sim, fazer algo de bom e belo. Eis a Revista da Casa de Goa, a menina dos nossos olhos, que tem o condão de produzir novos temas e novos rumos. Mas não paremos por aí. Olhemos atentamente para os gravíssimos problemas da actualidade goesa e sejamos o fulcro dum plano de acção conjunta da nossa comunidade espalhada pelo mundo, em prol da nossa sempre amada Goa.

(Revista da Casa de Goa, Série II, N.º 10, Maio-Junho 2021)


As realidades da nossa identidade

As minhas primeiras palavras são de agradecimento pelo honroso convite que me foi feito de integrar o conselho editorial desta dinâmica Revista, e de saudações aos leitores. Aceitei-o de bom grado por se tratar de um elenco de obreiros culturais com quem doravante poderei colaborar mais estreitamente. E, pela obra feita, os meus parabéns e votos de longa vida à Casa e à sua Direcção.

Para além desses laços que me unem à Revista da Casa de Goa, é a própria terra e cultura de Goa que me acenam. Vivo no meu torrão natal, porém, não pretendo conhecê-lo melhor do que outros que não têm esse ensejo. E nem se pode dizer que os que se ausentam por força das circunstâncias têm menos amor à terra dos seus antepassados. No nosso caso, o que vale é ter o coração sempre a bater por Goa.

Mais. Não é somente o sangue que determina a cidadania cultural. Goa, que conheceu outros povos e culturas, poderia comprovar que no decurso da sua longa história foram muitos que se apaixonaram por ela. Ainda hoje, há pessoas que têm um enternecedor amor, dir-se-ia mesmo uma ligação espiritual com ela. A nós cumpre enaltecer e perpetuar o que há de nobre nesse talismã que se chama Goa.

Podemos dizer, sem receio de errar, que Goa é ao mesmo tempo terra e estado de espírito. E quem somos nós? Na feliz frase de António Colaço, “somos uma pequena e grande família. Não há aqui hindus, moiros ou cristãos. Há só Goeses”. Importa salvaguardar a nossa irmandade, deixando-a viva tanto em Goa como em Lisboa, enfim, em todos os lugares onde se encontram os Goeses, desde os tradicionais kulls ou clubes nas metrópoles indianas até às associações culturais e desportivas dos goeses espalhados pelo mundo.

Neste particular, devem Goa e Lisboa assumir um papel de liderança. Essa liderança se impõe pelo facto de serem elas os pilares da universal Casa e Espírito de Goa. Graças a Lisboa, a minúscula Goa foi em tempos o ponto de encontro do Oriente e Ocidente: aí se fundiram as culturas lusa e indiana; aí dois mundos se trocaram; aí se deu aquilo que Gilberto Freyre designou de “milagre sociológico”. Goa e Lisboa foram mesmo precursores da globalização.

Fica assim bem clara a acção pioneira que tiveram Goa e Lisboa no conhecimento mútuo das sociedades e culturas. Em ambas as cidades o elemento local se tornou universal, e vice-versa. Como agentes de transformação dos povos que mal se conheciam; como modelos de paz e amor fraterno, Goa e Lisboa têm os seus nomes escritos em letras douradas. Só que jamais se pode falar de amchém bhangarachém Goem – “nossa Goa dourada” – nem Lisboa se pode gabar de capital cultural sem problemas.

Nessas voltas que o mundo dá, festejemos a nossa identidade, cantando os louvores à língua e literatura, música e arquitectura, indumentária e culinária, às nossas seculares instituições e tradições, mas reconheçamos também as novas realidades…. Aquilo a que chamamos Goa, existe ela na realidade, ou é uma simple miragem? Se existe, até quando será ela goesa? E esse espírito, estaria ele claro ou cada vez mais nebuloso?

Nesse sentido, urge uma conscientização e relevante acção. Consistiria em viver com amor ao torrão natal; valorizar o seu património; salvar o meio ambiente; cultivar as terras com engenho e alegria; e acima de tudo, participar activa e patrioticamente na governação, com plena consciência dos valores subjacentes à cultura goesa.

Nesta Revista e noutros lugares, enquanto delineamos o nosso ideal, trabalhemos com os corações unidos em volta desta louvável causa comum.

(Editorial na Revista da Casa de Goa, II Serie, N.º 6, Set.º-Out.º de 2020)

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A Última Conversa com Percival Noronha

Numa tarde chuvosa (1 de Julho do ano passado), quando de súbito me lembrei do Sr. Percival Noronha[1], não hesitei em terminar a minha sesta dominical. Um distinto cavalheiro – culto, agradável, e que me estimava – daí a dias iria completar a bonita idade de 95 anos… Urgia, pois, falar com o grand old man de Pangim.

Quando liguei para a sua casa, ouvi logo um ‘Estou!’ inconfundível. Na linguagem do Sr. Percival, esse estar era o mesmo que estar disponível! ‘Pode o Óscar vir quando quiser’, disse com a amabilidade que o caracterizava. Estava sempre pronto para um papo, e desta vez seria como nunca dantes: radiodifundida na minha rubrica mensal, Renascença Goa… (https://www.youtube.com/watch?v=KRK2PimgTmo) Saí então rumo às Fontaínhas, acompanhado do meu irmão Orlando que trataria das fotos.

Era um prazer ir à residência do Sr. Percival (‘Ajenor’, nº E-426, à Rua Cunha Gonçalves). Também nos cruzámos, por centenas de vezes, em concertos, conferências, exposições de arte, e não menos em casamentos e funerais. Um senhor da velha guarda, era cumpridor dos seus deveres sociais e cívicos. Apesar da nossa diferença etária, a conversa corria como um rio de águas claras, pois o Sr. Percival era não só envolvente mas também apreciador dos méritos dos seus contemporâneos e estimulador dos talentos dos mais novos.

Por muito curioso que pareça, vi o Sr. Percival Noronha, pela primeira vez, no longínquo ano de 1969. Foi isso na sede do Governo, ou seja, no Palácio do Idalcão, a antiga residência oficial dos Vice-reis e governadores portugueses (1759-1918), o qual a partir de 1961 passara a denominar-se Secretariat. Aqui trabalhava também uma tia minha, Maria Zita da Veiga. E conservo a grata memória de o Sr. Percival nos convidar ao Café Real para o chá das cinco. Como o restaurante apinhado de gente, demorámos no seu Volkswagen Beetle, onde vieram chávenas de chá para os colegas e um refresco para o menino que os acompanhava!

Diga-se de passagem que eu admirava o seu automóvel, preto, parecendo sempre novo, tal como o seu proprietário. Este, sempre vestido de bush shirt ou camisa safari, percorria os cantos e recantos da cidade, que conhecia como a palma da sua mão. É que Percival e Pangim se pertenciam um ao outro: foi dos melhores cronistas da capital, do seu ethos e do seu ritmo, que descreveu em bela prosa.[2] E fê-lo com autoridade, mesmo porque presenciou nove décadas, ou seja, metade da história dessa urbanização,[3], de forma que hoje se torna difícil imaginar o nosso Pangim sem o Sr. Percival Noronha.

Cargos oficiais

Feitos os estudos liceais na capital, o Sr. Percival Noronha entrou para a administração pública, em 1947. Trabalhou, primeiro, nas Obras Públicas, passando depois para os Serviços da Estatística e Informação. Quando esta foi desagregada, o distinto professor e escritor António dos Mártires Lopes levou-o consigo para os novos Serviços de Turismo e Informação de que este acabava de ser nomeado chefe. O Sr. Percival nunca se esqueceu dos belos tempos do Liceu e do funcionalismo que passou sob a alçada directa desse seu antigo professor liceal: confessava que essa relação fora fundamental em nutrir a sua paixão pela história e cultura.

Quando se deu a mudança do regime politico, em Dezembro de 1961, o Sr. Percival era chefe-adjunto dos Serviços da Informação, reportando ao governador-geral Vassalo e Silva. Em Junho de 1980, a visita do simpático governador coincidiu com as comemorações do 4.º centenário da morte de Luís de Camões em Goa. Vinha a título pessoal, mas nem por isso a visita deixou de suscitar controvérsia.

Decorreu-se o pior da cena no Azad Maidan (‘Largo da Liberdade’), a antiga Praça Afonso de Albuquerque. Aqui, à certa distância, vi o antigo governante a ser interpelado por alegados actos de comissão e omissão do regime português em Goa.[4] O embaraçoso incidente atalhou-o o Sr. Percival Noronha, que, na qualidade de chefe de Protocolo do Território de Goa,[5] estava incumbido de acompanhar o ilustre visitante.

Antes dessa data, com a limitada bagagem de conhecimentos de inglês auferidos no Liceu, e língua essa que logo veio a dominar, o Sr. Percival Noronha ocupou outros cargos importantes na administração indiana. Foi sub-secretário das indústrias, minas, trabalho, saúde e turismo. Entre muitas outras iniciativas suas, os hospitais do Asilo em Mapuçá e o Hospício de Margão passaram a subordinar-se à Direcção de Saúde. Desenvolveu as zonas de Calangute, Colvá, Mayém e Farmagudi, e ideou os desfiles do Carnaval e Xigmó; teve papel preponderante no arruamento Campal-Miramar e na arborização do Parque Infantil; e foi um dos responsáveis pela realização da grande Feira Agrícola em 1970. Ora, possuidor dum raro espírito de autocrítica, não ocultava as faltas que houvera no planeamento e execução dessas suas propostas.

Não admira que o Sr. Percival Noronha tivesse sido um solteirão muito cobiçado. Passou, porém, a vida a cuidar da veneranda mãe, vindo a aposentar-se apenas um ano após a sua morte. Era igualmente dedicado à vida burocrática, passando horas a fio à mesa do gabinete, até para além das horas regulamentares. Um funcionário desse quilate podia facilmente esquecer-se de si próprio, como foi, na verdade, o caso do Sr. Percival Noronha.

Vida de aposentado

Teria sido diferente a sua vida depois de aposentado em 1981? Mudou de actividade, sim, mas o expediente não mudou de volume. Dedicou-se, a tempo inteiro, às matérias por que tinha propensão natural: a arte, a história e a astronomia.

Começou por dotar a sua residência com mobiliário de estilo tipicamente indo-português. Efectuou-se grande parte dessa obra no rés-do-chão do seu prédio, o qual havia sido confiado ao conhecido carpinteiro Zó. Disse-me, em mais de uma ocasião, que gastara nisso quase todas as suas economias. Também é verdade que todo dinheiro lhe era pouco quanto se tratasse de comprar objectos de arte e livros.[6] Assim, a casa se viu transformada em verdadeiro museu-arquivo que deveras honra o histórico bairro das Fontaínhas.

O Sr. Percival não parou por aí: tomou a peito vários assuntos de interesse público. Inspirado pelo alto funcionário (e depois governador) K. T. Satarawala, no ano de 1982 abriu um ramo da Indian Heritage Society em Goa e foi professor convidado da Faculdade de Arquitectura. Exerceu o cargo de secretário daquela organização não-governamental que, em colaboração com a Town and Country Planning Department, preparou um relatório sobre os prédios e sítios de importância arquitectónica no território de Goa. Foi também tesoureiro do INTACH (Indian National Trust for Art and Cultural Heritage) em Goa.

Esses organismos continua a desempenhar o importante papel de alertar a opinião pública e de sugerir medidas pela preservação do património cultural mas falta-lhes o Percival, que em crónicas de jornal e trabalhos de pesquisa, se esforçara por esclarecer os conceitos relativos à tradição goesa.[7] Tinha subjacente um apelo por que os goeses se pusesssem à altura da sua história e cultura, que fazia questão de interpretar como verdadeiramente indo-portuguesa. Sendo a Velha Cidade, sem dúvida, o berço dessa cultura, era natural que a antiga capital do Império Português no Oriente fosse a menina dos seus olhos.[8] E pelos serviços prestados à divulgação e defesa da cultura de língua portuguesa e da identidade indo-portuguesa em Goa o cronista do nosso passado foi agraciado pela República Portuguesa com a Ordem do Mérito (2014).[9]

Embora o Sr. Percival Noronha fosse indiferente em matéria religiosa, nunca hostilizou a Igreja. Pelo contrário, reconhecendo o papel desta no progresso espiritual e material dos povos, colaborou com as entidades eclesiásticas. Em 1986, quando da visita do Papa João Paulo II, participou entusiasticamente na preparação do evento. E, em 1994, foi membro fundador do Museu de Arte Cristã que ora se acha no Convento de S. Mónica.

Esse goês de gema era um arco-íris de saberes, tratando tanto da arqueologia como da astronomia com a mesma facilidade. Fundou a Association of Friends of Astronomy (AFA)[10], em 1982. Este organismo, além de vir a publicar uma revista mensal, Via Lactea, editada pelo fundador, abriu, em 1990, um observatório astronómico público – o primeiro do seu género na Índia – com o apoio do Departamento de Ciência, Tecnologia e Meio-Ambiente, do Estado de Goa.

O Sr. Percival Noronha viveu uma vida sem artifícios – plain living and high thinking. Foi um líder cultural que criou à sua volta uma pleiade de jovens com decidida propensão pela história, arqueologia, arte e astronomia. Na sua casa, onde funcionavam os dois organismos que criou, recebia jornalistas, pesquisadores e outra gente interessada. Teimava em alertar a geração nova sobre o grave estado de bancarrota civilizacional em que a sua amada Goa estava a descambar. Esses recursos humanos e hábitos salutares sendo o maior legado do Sr. Percival Noronha, tem razão a Fundação Oriente em apelidá-lo de “Um Goês Exemplar”, num livro que publicou em sua homenagem.

Na verdade, é a vida intelectual que o entusiasmava, contribuíndo também para a sua saúde física. A sua roda de amigos da velha data[11] nutria a saudade pelo passado enquanto a geração nova o desafiava com projectos futuristas. Era um desses amicus certus, que tratando-se de algum sem-vergonha, falava, tipicamente, com ironia e sorriso escarninho. Mas não vou sem frizar que a todos desejava o bem, e para uma vida saudável recomendava-lhes uma medida de moog grelado por dia! Antes da prótese da anca, em Abril deste ano, esteve relativamente lúcido e ágil.

Última conversa

96 anos da vida. Dir-se-ia mesmo que o Sr. Percival Noronha teve sete vidas. Nos últimos anos era seu costume, quando adoecesse, anunciar a sua morte e daí a dias estar em pé! Era como que tivesse um sistema imunológico como o do gato persa, de que gostava. Não era motivo para recear, pois, quando ouvi de novo que o Amigo estava em declínio. Tive, porém, empenho em conversar com ele demoradamente.

Às 4,30 da tarde, o Sr. Percival tinha já à mesa o bule de chá e bolachas. Dormira a sesta e estava pronto para uma conversa. A rapariga, às ordens, sentada lá no fundo da sala. E parecia tudo como dantes...

Foi quando notei que o venerando ancião tinha o cabelo despenteado, a barba por fazer, e faltava-lhe a placa de dentes. Nunca o vira assim… Os apetrechos de trabalho estavam lá todos, arrumadinhos, nas estantes e armários, dum lado da sala de jantar, onde costumava passar grande parte do tempo a trabalhar. Também isso não estava como dantes... E reflecti também que desta vez o meu anfitrião que viera ele à janela, como era seu costume, deitando para mim a chave da porta principal… Tudo isso indicava que a sua vida ia afrouxando. Fiquei triste.

Por outro lado, animou-me o facto de ele mandar vir esse ou aquele livro ou pasta que até sabia bem onde estava. Já dava sinal de certa lucidez... Continuando a conversa notei que já não era o mesmo Percival Noronha de 1969; ou o de 1999, quando me recomendou que concorresse para a tradução do livro de Maria de Jesus dos Mártires Lopes[12]; ou o de 2004, quando me deu um depoimento sobre a Velha Cidade[13]; e nem mesmo o de 2016, quando me falou sobre o meu tio-avô[14]. Não, não era o mesmo Percival Noronha!

No entanto, ia falando sobre o seu currículo escolar e profissional; as suas actividades depois de aposentado; sobre Salazar (cuja inteligência e honestidade admirava) e o 18/19 de Dezembro; a administração, portuguesa e indiana; os cursos e conferências que realizou nas universidades da Ásia e Europa; o futura da língua portuguesa em Goa; a cultura goesa e a distorção da sua história; os seus amigos e as pessoas que admirava; e a vida em Pangim: tudo isso, entre muitos outros assuntos, e não necessariamente nessa ordem de ideias.

Nos últimos meses, vi-o, várias vezes, debruçado no peitoril da varanda, qual abencerragem a observar a vida que corria lá fora, e com a cara de quem pensa: Quantum mutatis ab illo… Barbudo, lembrava Abraão, personagem de primordial importância para as comunidades à sua volta. E com aquele cabelo a voar e ele a fitar o firmamento, assemelhava-se à figura de Einstein…

Também lá do alto do Céu ouvirá – no último domingo do mês de Novembro deste ano – a última entrevista que concedeu cá na terra. Foi a minha última conversa com o Sr. Percival Noronha.

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[1] De nome completo, Percival Ivo Vital e Noronha (26.7.1923 –19.8.2019), filho de António José de Noronha, de Loutulim, e de Aurora Vital, de S. Matias.

[2] “Panjim: Princess of the Mandovi” (2002); “Fontaínhas: vivendo com o passado”(2001); “Fontaínhas: the Tale of Panjim’s Latin Quarter” (2003), in Percival Noronha: Um Goês Exemplar (Fundação Oriente, 2015)

[3] A vila de Pangim foi elevada à cidade com a denominação de Nova Goa, por alvará de 22 de Março de 1843, o qual lhe outorgou todos os privilégios de que gozavam as cidades de Portugal Continental.

[4] O incidente impulsionou a minha primeira intervenção jornalística em forma de uma carta ao director dum jornal de Pangim – “Our Honoured Guest”, in The Navhind Times, 12/6/1980.

[5] Na altura, cumulava este cargo com o de director da administração das Obras Públicas.

[6] Doou a sua casa ao sobrinho Francisco Lume Pereira, de Verna, onde Percíval Noronha faleceu, e os livros doou-os à Universidade dos Açores e à Krishnadas Shama Library, de Pangim; e os diapositivos, ao Arquivo Histórico Ultramarino.

[7] “Christian Art in Goa” (1993); “Indo-Portuguese Furniture and its Evolution” (2000); “Priceless Christian Art” (2004), e “Goan Artisans” (2008), in Percival Noronha: Um Goês Exemplar (Fundação Oriente, 2015).

[8] “Levantamento arqueológico da Velha Goa e tentativas para a sua conservação” (1989); “Old Goa in the context of Indian heritage”(1997); “Um passeio pela Velha Cidade de Goa”(1999); “A Capela de Nossa Senhora do Monte, em Velha Goa” (2001), ), in Percival Noronha: Um Goês Exemplar (Fundação Oriente, 2015).

[9] Recebeu  ao todo 16 galardões de proveniência vária.

[10] http://afagoa.org/about_us.html

[11] Entre outros, António dos Mártires Lopes, Aleixo Manuel da Costa, Maria de Jesus dos Mártires Lopes, Alcina dos Mártires Lopes, Artur Teodoro de Matos, Luís Filipe Thomaz, Teotónio de Souza, Rafael Viegas, Nandakumar Kamat, Satish Naik.

[12] Tradition and Modernity in Eighteenth-Century Goa (Manohar, New Delhi & Centro de HIstória de Além-Mar, Lisboa, 2006)

[13] Old Goa: A Complete Guide (Panjim: Third Millennium, 2004)

[14] Castilho de Noronha: por Deus e pelo País (Panjim, Third Millennium, 2018)

Fotos de Orlando de Noronha, com excepção da da condecoração (e-cultura.pt) e da do lançamento do livro (Fundação Oriente)

Publicado na Revista da Casa de Goa, II Série, Número 1, Maio/Dezembro de 2019 https://issuu.com/jmm47/docs/revista_da_casa_de_goa_-_ii_s_rie_-_n1_-_maio-dez_


Os vinte cinco anos da Fundação Oriente em Goa...

Entrevista ao Dr. Carlos Monjardino, Presidente do Conselho da Administração da Fundação Oriente, por Óscar de Noronha

ON – Senhor doutor, muito boa tarde, e obrigado por nos receber! E desde já parabéns pelo jubileu da prata da Delegação da Fundação Oriente em Goa!

Séde da Delegação da Fundação Oriente em Pangim, Goa

CM – Boa tarde e muito obrigado! É sempre um prazer.

ON – Que balanço faz aos últimos 25 anos?

CM – Os primeiros anos foram, não digo difíceis, mas demoraram algum tempo a passar. Tínhamos algumas limitações – não muitas, porque desde o início tivemos um grande suporte por parte de quem tinha que nos “fiscalizar”: era o ICCR [Indian Council of Cultural Relations]. E logo a seguir quando eu fui ter com eles em Delhi, para lhes apresentar o primeiro projecto, o primeiro plano de actividades da Fundação aqui, que eu insisti que era para a Índia e não só para Goa, porque na altura, é bom saber, há 25 anos, as relações não eram as que são hoje. E, portanto, expliquei que estaríamos instalados em Goa, mas que a nossa acção ia para além de Goa também, como tinha que ser.

Nessa altura não tivemos quaisquer problemas. Analisaram o nosso plano de actividades. Houve uma única coisa que não quiseram que nós fizessemos, que foi ter uma livraria portuguesa em Goa. Não quiseram (a rir) mas isso também não teve problema nenhum, porque, passado muito pouco tempo, fizemos aqui uma feira de livros – foram duas, aliás, feitas por nosso comum amigo António Alçada Baptista, que gostava muito de Goa e que organizou muito bem essas duas feiras... foram um sucesso imenso.

Pronto, as coisas foram correndo. Fomos apoiando projectos aqui; fomos publicando algumas obras de escritores locais; também todos os anos vamos dando algumas bolsas de estudo; fomos apoiando o ensino de português que até hoje continuamos, e nós hoje temos 14 ou 15 professores de português que, de alguma maneira, têm um apoio nosso para ensinar português aqui...

E, portanto, fomos andando… Temos aquela célebre exposição que todos conhecem, do [António Xavier da] Trindade, lá na delegação da Fundação. É um pintor maior e, portanto, em qualquer sítio do mundo era conhecido como o Rembrandt daqui da zona...

ON - O Rembrandt do Oriente!

CM –  ... do Oriente, e fomos surpreendidos com uma doação daquelas obras, mas que aceitámos de imediato com algumas limitações que existiam na altura... Depois adquirimos mais algumas obras do mesmo artista, mas não muitas... Também não há muitas no mercado. E agora vamos fazer uma segunda edição do Xavier Trindade com muitas obras que não foram expostas antes e que serão expostas este ano, lá nas Fontaínhas, na nossa Delegação.

Exposição permanente de A. X. da Trindade, na séde da Delegação da Fundação Oriente em Goa

ON – Muito bem. Além disso, a Fundação Oriente fez trabalhos com os nossos edifícios – com o nosso património arquitectónico; e programas de música, como o Festival do Monte!

CM – Sim, quanto à recuperação de edifícios de interesse histórico ou simplesmente arquitectónico aqui em Goa e à volta de Goa, nós, porque tínhamos a noção – o que é normal, enfim – que o que distingue Goa do resto da Índia é que tem uma componente cristã muito grande. E portanto tem as igrejas, tem as capelas e os cruzeiros por aí fora, e nós fomos ajudando nisso, mas depois também sentimos que não podíamos ficar só a apoiar essas iniciativas que nos propunham, e resolvemos ir mais longe do que isso: resolvemos apoiar também uma recuperação dum templo hindu, que para grande espanto de muitas pessoas... –mas estas coisas eu, às vezes, como se costuma dizer, tiro um coelho do chapéu... – e fizemos isso... Foi aceite pelas entidades que controlavam lá o templo hindu e recuperámos o templo hindu. Porque havia sempre umas vozes que diziam ‘porque apoiar sempre as igrejas?’... Eu, claro que tanto apoio as igrejas como apoio os templos hindus. Mas é claro que aqui o que faz mais sentido é apoiar as igrejas porque há uma profusão de igrejas que precisam de ser recuperadas... Mas, pronto, vamos fazendo, temos uma visão muito aberta do que devemos fazer aqui...

ON – Aliás, até calha bem porque os templos hindus aqui são muito diferentes dos templos do resto da Índia. Aqui têm uma característica indo-portuguesa mesmo!

CM – É! Portanto se alguém responsável por alguns templos hindus que tenham que ser recuperados, e que me vá ouvir, podem falar com a dr.ª Inês Figueira [Delegada em Goa], que nós teremos maior prazer em apoiar também a recuperação de templos hindus....

Capela do Monte, restaurada pela Fundação Oriente

Mas depois também a outra parte que estava a dizer: os festivais de música. O festival da Senhora do Monte para nós tem um significado especial porque há dezoito anos que promovemos aquele festival. Primeiro, começámos por recuperar a Capela [do Monte], que foi um trabalho bastante pesado não só do ponto de vista arquitectónico de recuperação, mas também financeiro. Foi muito pesado. Mas, pronto, foi feito e agora é preciso voltar a fazer alguma manutenção porque com o clima que existe aqui às vezes as coisas vão-se deteriorando rapidamente... E agora há uma nova fase de manutenção e de recuperação duma parte que tem que ser feita também....

ON – Os objectivos da Fundação Oriente variam de país para país...

CM – Variam, consoante o que é a realidade em cada país...

ON – O que é que a Fundação gostaria de fazer, mas ainda não conseguiu fazer na Índia?

CM – Há certamente muitas coisas que a gente gostaria de fazer, mas nós temos cingido àquilo que é possível fazer com os meios que temos – porque os nossos meios também não são ilimitados – e passámos a mensagem de que a Fundação Oriente, que foi criada aqui um pouco por iniciativa do dr. Mário Soares... Quando eu fui para presidente da Fundação – foi ele que me convidou, de resto – me chamou à atenção para uma fundação que eu tinha criado, assim, no papel, antes, em Macau, e depois eu fui para Portugal... Ele chamou-me para eu de facto dar vida à Fundação, coisa que eu fiz... Passado muito pouco tempo, ele telefonou-me e diz-me assim: ‘Ouça lá, você não quer fazer qualquer coisa na Índia? Nós precisamos de reforçar os laços com a Índia; as relações ainda estão um bocadinho tremidas. Talvez fosse bom ter qualquer coisa...’ ‘Claro que estamos, e o natural seria Goa’. E ele diz-me assim: ‘Com certeza. Você vá lá e veja se consegue então uma coisa que era muito importante para Portugal e para a Índia, que houvesse uma instituição que fizesse essa ligação, ou que ajudasse a fazer essa ligação.’

E então eu cá vim, como pessoa bem-comportada – que não sou – mas naquela altura fui – vim cá a mando do dr. Soares, para criar a Delegação cá. E ele tinha a noção de que era necessário naquela altura fazer mais qualquer coisa porque aqui – vocês aqui se calhar não se lembram... vocês são todos muito novos, você incluindo é muito novo – vocês não se lembram que há 25 anos não havia nada de português em Goa...

Rão Kyao e o seu Conjunto, no Festival do Monte (2020)

ON – Sim, a gente aqui em Goa perdeu uma geração... completamente... houve um hiato, mas graças a ...

CM – Pronto, mas não havia nada, não havia Consulado, não havia nada. Não havia o Instituto Camões, não havia nada. Por isso é que a gente assumiu o ensino do português também... Bom, e o Consulado, nem pensar nisso!... Bom. E, portanto, estávamos aqui um bocado sozinhos. Não temos funções consulares, portanto não podíamos substituir-nos ao Consulado, mas iamos fazer aquilo que achámos que podíamos fazer, com grande ajuda do Governo, de então, de Goa... Eram pessoas muito compreensivas, e que entenderam bem aquela ideia que o dr. Soares tinha na cabeça, que era preciso fazer qualquer coisa aqui, na Índia e a partir de Goa.

ON – Mas ainda falta algum passo a tomar? O senhor doutor acha que o Governo da Índia ou o de Goa deve tomar um passo que ajude depois a Fundação a actuar melhor?

CM – Eu acho é que poderia haver... Eu gostaria – gostaria, mas este é um desejo e isto tem outras limitações – eu gostaria que o Governo local estivesse mais próximo daquilo que nós fazemos, mas não está muito... Digo a si, em abono da verdade, não está muito... Houve uma altura, há uns anos atrás, que esteve, razoavelmente próximo.... Agora não vou por aqui dizer nomes porque se não arranjo por aqui um sarilho de todo o tamanho, porque já não são os mesmos partidos... arranjo por aqui uma trapalhada, portanto o melhor é não dar nomes... Mas houve uma altura em que estavam muito próximos daquilo que nós fazíamos. E portanto, gostaria que fizessem mais; que o responsável da Cultura aqui tivesse um melhor interesse naquilo que nós fazemos. E em Delhi também, mas em Delhi eu acho que, apesar de tudo, – é longe – mas apesar de tudo, quando se vai lá eles mostram interesse naquilo que nós fazemos na Índia em geral e em Goa em particular...

ON – Os anos 97 e 99 devem ter sido marcos importantes para a Fundação...

CM – 97, não tanto, 99, sim. Em 97, para a Fundação teve um pouco foi o problema da China e o Hong Kong. A questão de Hong Kong não foi dar em nada. O ano de 99 foi mais importante por causa da saída da administração portuguesa de Macau. Isso foi muito importante.

ON – Mas eu falava dos fundos dos casinos, que cessaram...

CM – Não, já antes não havia nada. Eu já tinha tido uma pega com os chineses – que é o meu costumo arranjar assim umas pegas de vez em quando!... (a rir) Não, porque os chineses não levaram a bem que a Fundação tivesse sede em Lisboa e não em Macau. Portanto criou-se ali um mal-estar, e esse mal-estar levou a que eu tivesse que ceder – o que é difícil, porque normalmente eu não cedo com muita facilidade! Em 1997, com efeitos retroactivos em 96, deixámos de receber dinheiro local... E era muito dinheiro que recebíamos de Macau.

ON – Exacto! No entanto, a Fundação soube gerir as coisas: investiu noutros lugares, etc...

CM – A Fundação soube investir e tinha guardado uma almofada grande em termos de liquidez, não gastando tudo aquilo que tinha recebido do passado e pondo de parte... Eu não adivinhava o que ia acontecer, mas felizmente pus de parte uma parte substancial daquilo que tínhamos recebido no passado – coisa que as pessoas me acusavam muito, dizendo: ‘Recebe tanto dinheiro e gasta tão pouco!’ E eu disse: ‘Olhe, é para outros dias.’ Olhe, eles vieram – os dias mais complicados vieram depois. Mas tivemos muita sorte e algum saber... Já não gosto de dizer isso porque quem faz os investimentos sou eu...

Fizemos dois ou três muito bons investimentos que criaram mais valias importantíssimas para a Fundação... Para lhe dar uma idéia – esta é uma área de que as pessoas acham graça, mas que é um bocado árida – nós hoje temos em termos de activos praticamente a mesma coisa do que tínhamos quando começámos a Fundação. E já gastámos para cima de uma fortuna nestes 25 anos, porque ao princípio gastámos muito dinheiro na China, muito mais, se calhar, do que devíamos ter gasto, mas nós tínhamos que afirmar uma posição na China, portanto fizemos um esforço grande em relação a subsídios para a China e, depois, em Macau, e só um bocado depois é que nos virámos para Portugal. E só começámos a trabalhar mais a sério com Portugal já passados alguns anos porque era a altura, fizemos o Museu [do Oriente], que também foi um investimento particularmente grande e onde temos peças indianas muito bonitas ...

ON – A “almofada” de que o senhor doutor falava ajudou a absorver todos os choques dessas bruscas mudanças económicas que houve na Europa...

CM – Exactamente, exactamente!

ON – Apesar de todos os problemas, conseguiu abrir um Museu de que agora falou e que, se calhar, é o maior projecto da Fundação até hoje...

CM – Sim, é o maior projecto da Fundação até hoje. As pessoas gostam muito do Museu. É de facto um museu muito activo, interactivo mesmo. Em Portugal é de longe o museu com mais actividades, para miúdos, para crianças e para jovens. E tem várias componentes: tem yoga... tem tudo! É, portanto, um museu curioso, muito diferente dos outros museus que há por lá. Mas foi de facto um projecto maior que, financeiramente mais pesado... mas está lá... É aquilo, e pronto, nós, a Administração, temos agora encostado ao Museu um edifício que é o nosso edifício da Administração, que do edifício que estava no meio da cidade passou para ali... e agora estamos todos juntos. É um projecto que hoje é um todo que faz sentido...

Concerto de música sacra, no Festival realizado na Capela do Monte (2020)

ON – O senhor doutor passou do sector governamental para o sector privado...

CM – Não, passei do sector privado muito brevemente para o sector governamental, como você diz, e depois rapidamente também saí outra vez e voltei. Não é que tenha algo contra o público, não tenho; antes pelo contrário, mas a vida é assim. Tive aquela oportunidade que me foi dada pelo dr. Soares para ir para Macau, e estive em Macau 14 meses, não estive mais, e voltei outra vez para o privado...

ON – E o que significa para o doutor, pessoalmente, o ter estado à testa da Fundação Oriente há 32 anos?

CM – 32 anos: o que é que significa? Significa que estou velho! (a rir) Não, significa que apesar de tudo é interessante – eu não escondo – acompanhar um projecto que eu próprio criei. Isso é interessante para mim ver a evolução da Fundação com uma forma sólida: é isso, e de outra forma não poderia ser, porque eu sou conhecido – e pergunte ali à dr.ª Inês, ela dirá a mesma coisa – eu sou muito agarrado ao dinheiro, de maneira que estou sempre a fazer poupanças em tudo...

ON – E faz bem, porque o senhor doutor disse uma vez que sem dinheiro não se faz nada... não se faz cultura!...

CM – Pois não! Não se faz cultura, não se faz nada! Às vezes as pessoas da Cultura não funcionam bem assim. Acham que o dinheiro tem que aparecer de algum lado, mas não querem saber de onde. Lançam-se e dizem: ‘Ah, agora o dinheiro há-de aparecer.’ Mas não é assim; não é assim, e de facto, sem dinheiro não se faz rigorosamente nada! Por isso é preciso, antes de mais nada, meter uma gestão sã nos activos deste tipo de instituições como doutros, e é preciso fazê-lo...

ON – Temos que agradecer ao senhor doutor por todo o trabalho que a Fundação tem feito aqui por Goa. E queria saber quais os seus sonhos para o próximo futuro...

CM – Os meus sonhos?! Eu já estou velho para ter muitos sonhos! Vou tendo alguns, apesar de tudo! Bom, aqui em Goa? Eu nunca pus de parte completamente a hipótese, noutro campo que não cultural, de investir em Goa. Houve uma altura em que ainda pensei em investir na hotelaria porque a Fundação tinha várias participações na hotelaria, e ainda tem. Tem em Timor um hotel, em Lisboa neste momento só tem um. Mas na área grande de Lisboa, tem um. E pensei depois: é muito longe! E para gerir as coisas assim, à distância, é complicado, portanto esse projecto não avançou. Mas se aparecer um outro projecto qualquer, não digo que não a estudar um eventual investimento aqui em Goa.

Emmanuel de Noronha, Orlando de Noronha, Carlos Monjardino, Maria Inês Figueira, Óscar de Noronha

ON – Entretanto continuam com as coisas que já começaram... A Delegação aqui está a fazer um belíssimo papel...

CM – Espero que considerem que sim!

ON – Sim! Sim, sim!

CM – Se não temos que agarrar aí a dr.ª Inês! (a rir)

ON – Então, senhor doutor, com isto agradecemos muito esta conversa e desejamos muitos anos de vida para o senhor doutor – que continue com os sonhos – e todo o sucesso para a Delegação da Fundação Oriente em Goa!

CM – Muito obrigado, muito obrigado!

ON –  Muito obrigado sou eu.

(Entrevista radiodifundida em 23 de fevereiro de 2020, no programa Renascença Goa, acessível no You Tube: https://www.youtube.com/watch?v=4HqO1k5iDX4; e publicada na Revista da Casa de Goa, II Série, No. 4, Maio-Junho 2020)